Por Luciana Royer*
O arranjo tripartite que caracteriza a federação brasileira tem gerado questões que parecem de difícil resolução para as nossas cidades. É sabido que os limites administrativos municipais não correspondem aos limites físicos das metrópoles e algumas soluções no sentido de fortalecer jurídica e administrativamente as chamadas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas vêm sendo objeto de discussão desde a Constituição Federal de 1988. O Estatuto da Metrópole, lei federal 13.089/2015 aprovada em janeiro, insere-se nesse debate.
Um ponto importante que o estatuto traz é a obrigação de promover a governança interfederativa (art. 3º, parágrafo único), por meio de instâncias executiva e colegiada deliberativa e de um sistema integrado de alocação de recursos. Essa estrutura de governança é inclusive colocada como requisito para a instituição de novas regiões metropolitanas. Outro ponto importante do estatuto é a previsão de um plano de desenvolvimento urbano integrado que visa estimular o planejamento de ações, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum.
A questão do financiamento das ações e projetos metropolitanos, no entanto, continua não solucionada. Ainda que o repasse de recursos não onerosos para consórcios públicos já tenha um caminho trilhado (por meio de programas de aplicação de recursos da União), uma fonte estável de recursos fiscais e mesmo o financiamento com recursos onerosos ainda são lacunas legais e políticas. Quais são as garantias para concessão de financiamento aos entes metropolitanos? Como se dará a partição de receitas tributárias entre os municípios integrantes desses entes? Haverá um regime jurídico próprio para esse agrupamento ou apenas para a entidade encarregada de administrar (vinculada ao estado)? Qual é a capacidade de endividamento desse agrupamento ou região?
Em um quadro de austeridade fiscal permanente para a gestão pública, a definição do funding do desenvolvimento urbano integrado é primordial e desafia as boas intenções da lei. Por esse motivo, o veto presidencial aos dispositivos que criavam justamente um fundo nacional de desenvolvimento urbano integrado provoca dúvidas sobre a possível efetividade do estatuto. Conforme as razões de veto publicadas no Diário Oficial da União, “a criação de fundos cristaliza a vinculação a finalidades específicas, em detrimento da dinâmica intertemporal de prioridades políticas. Além disso, fundos não asseguram a eficiência, que deve pautar a gestão de recursos públicos. Por fim, as programações relativas ao apoio da União ao Desenvolvimento Urbano Integrado, presentes nas diretrizes que regem o processo orçamentário atual, podem ser executadas regularmente por meio de dotações orçamentárias consignadas no Orçamento Geral da União.”
A “dinâmica intertemporal das prioridades políticas”, apontada como uma das razões do veto aos artigos do fundo metropolitano, é justamente um dos pontos críticos da questão metropolitana. Como resolver o ponto cego do financiamento das ações que não são prioritárias para os prefeitos, às voltas com a insuficiência de recursos próprios para os desafios locais, não são prioritárias para os governadores, e que precisam contar exclusivamente com as dotações consignadas no Orçamento Geral da União, sujeitas aos contingenciamentos usuais para a composição do superávit primário?
A pretensa solução, então, recai na atual panaceia dos males fiscais da gestão pública: as parcerias público-privadas. Na esteira do Estatuto da Cidade, que já consagrava essa lógica, o Estatuto da Metrópole aponta, como instrumentos de promoção do desenvolvimento urbano integrado, as parcerias público-privadas e as operações urbanas consorciadas interfederativas.
Além de críticas consistentes ao real efeito redistributivo desses instrumentos, aliado ao potencial elevado de captura de recursos públicos escassos, é importante refletir sobre a possibilidade de aprovação de operações urbanas por lei estadual. Tratando-se de operação estruturada de financiamento de projetos alicerçada em venda de potencial adicional de construção e, dada a competência municipal para promover o controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano, parece ser questionável a competência que o Estatuto da Metrópole confere aos estados para dispor sobre instrumentos regulatórios dos municípios. Para esse fim, no entanto, o Estatuto da Metrópole fez uma única alteração pontual no Estatuto da Cidade, modificando o antigo artigo 34 da lei 10.257/2001 (ver art. 24 do Estatuto da Metrópole).
Ao vetar um fundo metropolitano e autorizar a execução de parcerias público-privadas e operações urbanas interfederativas, o estatuto parece abrir um flanco perigoso para um aprofundamento das desigualdades metropolitanas. A questão de um funding estável para as regiões metropolitanas e de seu financiamento com recursos onerosos permanece sem solução e desafia a efetividade do estatuto. Implantar um federalismo cooperativo democrático é uma das razões de ser do Estado brasileiro após a Constituição de 1988. O Estatuto da Metrópole, portanto, pode ser recebido como mais um capítulo na disputa por políticas regionais que diminuam as desigualdades e promovam a efetivação de direitos individuais e coletivos na federação e não como solução para essas questões.
Histórico – Até a Constituição de 1988, quem declarava se um aglomerado de municípios poderia ou não ser denominado legalmente como região metropolitana era a União. Entre 1973 e 1974, foram instituídas nove regiões metropolitanas: Belo Horizonte, Belém, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Após essa data, a Constituição delegou aos estados essa prerrogativa. Assim, muitas regiões metropolitanas foram formalmente criadas após 1988: atualmente, são 51 regiões metropolitanas e 3 regiões integradas de desenvolvimento (RIDE). Os critérios técnicos e geográficos para a criação dessas regiões não foram equivalentes entre os estados e algumas disfunções surgiram dessa denominação, com estados instituindo diversas regiões metropolitanas (Santa Catarina), regiões metropolitanas formadas por um único município (Manaus), ou ainda 39 municípios formando uma única região metropolitana (São Paulo).
Mas o processo de metropolização, ou o ‘fenômeno metropolitano’, não pode ser confundido com a definição legal de região metropolitana. Não são todas as regiões metropolitanas do Brasil que se caracterizam como aglomerados metropolitanos no sentido fenomenológico.[i] Para uma melhor compreensão do fenômeno metropolitano e das regiões metropolitanas é necessário, segundo Firkowski:[ii]
- a compreensão teórico-conceitual de metrópole como uma grande cidade, que possui funções superiores de comando e gestão articulada à economia global, atuando como porta de entrada dos fluxos globais no território nacional e na qual se ancoram interesses internacionais, ao mesmo tempo que emite, para o território nacional, vetores de modernidade e complexidade;
- a compreensão institucional de região metropolitana, definida por força de leis estaduais, relacionadas aos interesses políticos, por vezes, motivadas pela necessidade de ordenamento do território na escala regional e cuja cidade-polo não é necessariamente uma metrópole;
- a compreensão oficial de metrópole, dada pelos estudos do IBGE, que analisa a realidade brasileira à luz da visão conceitual, também utilizando metodologia própria e particularizando a classificação para a escala nacional.
A Constituição de 1988 define regiões metropolitanas como “constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, com o objetivo de integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum” (Art. 25, § 3º). No entanto, muitas dessas funções foram desestimuladas ao longo das décadas de 1980 e 1990 por conta da crise fiscal dos estados da federação. Assim, as regiões metropolitanas acabaram relegadas muitas vezes a um simples ajuntamento formal que não necessariamente conta com órgãos próprios de gestão.
O Estatuto da Metrópole busca preencher parte da lacuna federal no ordenamento das metrópoles brasileiras. Contém diretrizes e normas gerais para “o planejamento, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum em regiões metropolitanas e em aglomerações urbanas instituídas pelos Estados, normas gerais sobre o plano de desenvolvimento urbano integrado e outros instrumentos de governança interfederativa, e critérios para o apoio da União a ações que envolvam governança interfederativa no campo do desenvolvimento urbano, com base nos incisos XX do art. 21, IX do art. 23 e I do art. 24, no § 3º do art. 25 e no art. 182 da Constituição Federal.”
* Luciana Royer é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
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[i] Ver MOURA, Rosa; CINTRA, Anael. Dinâmicas Territoriais da População: Primeiros Resultados do Censo 2010. Nota Técnica nº 22 IPARDES. Curitiba: IPARDES, 2011. Cf. também: FIRKOWSKI, Olga L.C.F. Metrópoles e Regiões Metropolitanas no Brasil: conciliação ou divórcio? In FURTADO, B.A.; KRAUSE, C.; FRANÇA, K.C.B. (eds.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília: Ipea, 2013.
[ii] FIRKOWSKI, Olga L.C.F. Metrópoles e Regiões Metropolitanas no Brasil: conciliação ou divórcio? In FURTADO, B.A.; KRAUSE, C.; FRANÇA, K.C.B. (eds.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília: Ipea, 2013.
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*Sugestões de leitura:
ABRUCIO, Fernando L.; SANO, Hinoboru; SYDOW, Cristina T. Radiografia do associativismo territorial brasileiro: tendências, desafios e impactos sobre as regiões metropolitanas. In KLINK, Jeroen (Org.) Governança das metrópoles: conceitos, experiências e perspectivas. São Paulo: Annablume, 2010.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010 – aglomerados subnormais: primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/92/cd_2010_aglomerados_subnormais.pdf>.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Região de Influência das Cidades 2007. Rio de Janeiro: IBGE, 2008.
MOURA, Rosa; HOSHINO, Thiago A.P. Estatuto da metrópole: Enfim, aprovado! Mas o que oferece à metropolização brasileira? Disponível em http://www.observatoriodasmetropoles.net/download/estatuto_metropole_artigo_rosa.pdf. Acesso em 30 jan 2015.
ROYER, Luciana O. Municípios “Autárquicos” e Região Metropolitana: a questão habitacional e os limites administrativos In FURTADO, B.A.; KRAUSE, C.; FRANÇA, K.C.B. (eds.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília: Ipea, 2013.
Republicou isso em ivanmaglioe comentado:
Uma boa reflexão sobre o recente aprovado Estatuto da Metrópole. Questões polêmicas permanecem em aberto: O fundo pra financiar o Plano Metropolitano Integrado, a possibilidade do Estado promover Operações Urbanas e a governança metropolitana. A Região Metropolitana de São Paulo não tem um Plano Metropolitano desde 1994, quando o último foi elaborado pelo saudoso Jorge Wilheim, mas infelizmente foi engavetado. A crise da água, os problemas de mobilidade urbana e habitação e a questão ambiental, que entre outros temas requerem um tratamento integrado são exemplos da dificuldade em gerir as nossas grandes regiões metropolitanas.
[…] entretanto, foram vetados pela Presidente da República. As razões já foram discutidas em artigo da Profa. Luciana Royer publicado aqui no blog. Mas, ainda que não tivesse ocorrido o veto, o fundo não traria uma […]