Feira na cidade de Tefé, na beira do médio Solimões, tributário do Amazonas, 2019. Arquivo de campo, Geraldo Mosimann da Silva.

Como o Coronavírus contagia espaços em disputa na Amazônia

Marcela Vecchione Gonçalves *

Além de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Recife, duas outras cidades tomaram espaço nas notícias que irrompem atrozes telas de TV e celulares: Belém e Manaus. Começando pela segunda, Manaus foi a primeira capital do país a assistir triste e impotente o colapso do sistema de saúde público e privado. Amargou em seu ar úmido a espera de resultado de decisão liminar para que o maior hospital construído da cidade – pertencente a um grupo de saúde privada, localizado em área de expansão imobiliária da cidade e sem uso nem tampouco inaugurado – pudesse ser liberado à administração de saúde estadual.  A secretaria de saúde aguardou mais de duas semanas para a liberação do espaço, o que culminou e coincidiu com a decretação do estado de calamidade pública na cidade.

Manaus também amargou cena de repercussão nacional, bastante representativa da mediação da desigualdade por meio da morte no Norte do país. O controle dos corpos mortos pela COVID 19, que não encontravam espaço para habitar, nem mesmo nas valas comuns administradas pelo Estado, reproduziu em recorte temporal o que já foi tirado dos povos amazônicos desde muito tempo: morrer dignamente. Os corpos na maior cidade amazônica, vulnerabilizados pela desigualdade reproduzida em regime de colonialismo interno no Brasil, refletindo-se e repetindo-se, inclusive, na própria forma de expansão da cidade que se consolida sobre os modos de vida dos seus “outros”, empilharam-se congelados para, depois, serem mortos e enterrados.

O sofrimento social de quem estava na quase vida, e no alvo do Coronavírus, tem classe e raça. Tratavam-se dos outrora caboclos e caboclas, agora trabalhadoras e trabalhadores informais e, também, pessoas indígenas, que saíram do seu território para vir à cidade em busca do progresso – esta coisa que chegou a seus lugares para sustentar outras cidades, mas, que, infelizmente, não os deixou ficar e participar dos benefícios. Um paradoxo clássico das veias abertas do continente latino-americano sobre os territórios pan-amazônicos, reproduzido e traduzido na desigualdade regional até os dias de hoje.

A consolidação continuada e desigual do progresso por uma Manaus cercada pelos rios Negro e Solimões, sendo ponto de encontro em sua porção oeste, (re) formando o Amazonas para seguir à sua foz, rumo à Belém, reproduz disputas sobre territórios que, atualmente, são os mais vulneráveis à COVID 19. Esta disputa é sobre as áreas de baixões e várzeas para regiões portuárias do agro-minério negócio, sobre as áreas propícias à expansão aeroportuária e rodoviária, além de outros modais para integração de escoamento de commodities e trânsito nacional e internacional de pessoas, que desaguam, como os rios, em especulação imobiliária e planos diretores. Estas operações do capital via atuação regulatória do Estado transformam o que antes era floresta e várzea – o que era comunidade – em área de expansão urbana e industrial.

Já vivendo os intensos fluxos de migração do estado do Amazonas e de outras cidades, às vezes para além das fronteiras brasileiras, na construção e integração de zonas econômicas e industriais especiais, como a Zona Franca de Manaus, os territórios demandados e especulados, eram antes povoados – ou ocupados no trânsito – pelo hábito dos povos da floresta de seguir co-habitando, e não dominando verticalmente o espaço. A posse da terra urbana, ou simplesmente sua ocupação resistente, não reconhecidas pelo poder público em cidades amazônicas como Belém ou Manaus, tem muito a ver com esta dinâmica. Ao longo da década de 80 e, para além, estes territórios passaram a ser administrados e governados com fins de abrir espaço para as cidades, sobre as quais se diziam, desde a década de 70, que trariam desenvolvimento.

Cacuri de pesca na baia na foz do Amazonas, 2020. Arquivo de campo, Marcela Vecchione Gonçalves

Infelizmente, não foi e continua não sendo assim. A COVID-19 chegou às maiores cidades amazônicas e a seus arredores em um cenário de saneamento básico e ambiental que já beirava o colapso. Saneamento esse que precisa ser entendido na dimensão da saúde coletiva integrada, considerando o acesso à água, existência de monitoramento dos sistemas de esgotamento industrial, e sua limitação, incluindo o minerário e o industrial, e o próprio desmatamento e degradação ambiental em nascentes e áreas de recarga hídrica, nutrindo cursos fluviais. Estes últimos são áreas de captação de água para os povos nas cidades amazônicas, que dependem do uso direto das águas dos rios para higiene e, muitas vezes, segurança alimentar.

Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS 2018), no que toca ao acesso à água potável na região Norte do país, apenas 57,1% da população tem usufruto desse bem comum, (que deveria ser) proporcionado por serviço público. Como lavar as mãos, higienizar as roupas ou tomar banho ao retornar para a casa, um dos principais movimentos para evitar a contaminação pelo Coronavírus? Ou como manter o isolamento social se na comunidade em que se vive, já não se pode mais ficar em casa com qualidade de vida?

O significado da cidade atrelada ao tipo de progresso que vem usurpando a Amazônia, sendo exógeno à região, ainda que com a cooperação de elites locais, acaba alijando as pessoas dos lugares e, consequentemente, de suas histórias de vida. É um alijamento da posse que constitui o lugar onde coletivos se reproduzem socialmente. Por isso mesmo, é despossessão – potencializada no momento de pandemia. Esse exemplo é mais fático do que simplesmente teórico-analítico.

No estado do Amazonas, a primeira indígena contaminada pelo Coronavírus, uma mulher Kokama, não pôde ser registrada como indígena e ter atenção diferenciada, como seria garantido constitucionalmente, porque não estava aldeada, e vivia na cidade. O acesso e cuidado diferenciado que poderia ter lhe for retirado porque a cidade, aparentemente, não é lugar de índio. Esse é o caso de milhares de indígenas em muitas cidades amazônicas.

Não importam, assim, as condições e contradições que levaram a pessoa indígena à cidade ou, como tem sido comum na Amazônia, que levaram a cidade aos lugares e territórios das pessoas e territórios indígenas, desqualificando suas áreas de origem como territórios tradicionalmente ocupados. A subnotificação de casos que vem ocorrendo com relação aos povos indígenas é brutal e genocida, e consolida modelos de ocupação sobre seus territórios, negando-lhes, agora, o direito à personalidade e à sua subjetividade política e social, o que também apaga a existência no espaço e libera terra.

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), já são mais de 77 indígenas, entre 10 povos diferentes, com contaminação registrada no estado do Amazonas. Muitas dessas pessoas, desde anúncio feito pelo Governo Federal na sexta-feira (15 de maio), terão que se deslocar a centros urbanos, quando não estiverem lá vivendo, para poder receber auxílio emergencial, o que pode piorar a contaminação. O perverso é que quando estão vivendo nos centros urbanos não podem ser reconhecidas como indígenas. A cidade, pensada homogeneamente e para um determinado fim, acaba sendo a mediação da morte, simbólica e, principalmente, de fato, desses povos. Ou se é índio na aldeia, ou se é pobre na cidade. Fora disso, não há sobrevivência para o Estado.

Furo no Solimões, ligando ao Rio Amazonas, 2019. Arquivo de campo, Geraldo Mosimann da Silva

Navegando do Amazonas ao Pará, veremos que mesmo os indígenas em territórios garantidos, ou aqueles habitando em terras que já tiverem seu processo de reconhecimento iniciado, estão sob ameaça – do Coronavírus e por ter seus territórios afetados e usurpados pelo vírus da antidemocracia. Em grande medida, isso ocorre sob efeitos ramificados e capilares do desmatamento associado à expansão da fronteira agrícola e minerária na região, e dos resquícios da degradação, presentes na urbanização extensiva de processos de consolidação do uso e ocupação da terra relativos a processos econômicos, comerciais e agrários mais antigos, como é o caso de Belém.

Se olharmos para uma cidade como Santarém, no oeste paraense, no interflúvio dos rios Tapajós e Amazonas, longitudinalmente ocupando a confluência do fluxo da expansão da soja do estado vizinho, Mato Grosso, com suas infraestruturas relacionadas, os efeitos dessa urbanização extensiva combinada à consolidação da vocação agrícola minerária e florestal faz todo o sentido. Sendo cidade pólo base de atendimento para mais de 40 municípios que se encontram na região do Baixo Amazonas, bem como da Calha Norte deste rio, o município concentra o atendimento de casos de complexidade de aproximadamente 800 mil pessoas. Tendo menos de 100 leitos de UTI, e atendendo a diversos povos indígenas e quilombolas, Santarém abriga também o maior porto privado de transbordo de grãos da região, da Cargill, sendo confluência igualmente das BR 163 (Cuiabá-Santarém) e da BR 230 (Transamazônica).

Um dos rios que chegam e contribuem para os fluxos da cidade, o Tapajós, é um dos principais cursos fluviais que formam as bacias das terras baixas amazônicas em sua transição do Cerrado, sendo considerado também a maior província aurífera do mundo. Junto com o Arapiuns, um de seus tributários, possui um dos maiores lotes para concessão florestal de madeiras de alto valor de exportação na região amazônica. Esta confluência de recursos e posição geográfica estratégica gera pressão enorme sobre os serviços prestados pela e na cidade. Gera, particularmente, pressão da forma cidade que o agronegócio projeta sobre os territórios coletivos, comprometendo a saúde de seus povos, provocando efeitos negativos combinados e sinérgicos, que deveriam ser estudados de forma integral em tempos de Covid 19.

Entre os meses de março, abril, e metade do mês de maio de 2020 – o tempo da pandemia – o desmatamento acumulado no bioma amazônico já chegou a quase 2 mil km2 (Fonte: DETER, INPE). Durante todo o ano de 2019, este valor atingiu cerca de 9, 560 mil km2, um aumento de quase 85% em relação a 2018. Neste total, o oeste do estado do Pará representou aproximadamente 50% do aumento do desmatamento acumulado da Amazônia Legal, tendo os municípios na área de influência de Altamira e Santarém especial destaque.

Este processo atinge em cheio territórios indígenas e de povos e comunidades tradicionais, pois o desmatamento para a consolidação de projetos agrícolas e minerários traz junto invasão dessas áreas, regularizadas ou não, sendo todas terras públicas, comprometendo a saúde da população e aumentando os riscos de infecção por Coronavírus. Algo que ocorre historicamente em processos de consolidação e ocupação da Amazônia, como foram com os primeiros surtos de malária, dada a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré nos interflúvios do rio Madeira, no sul do Amazonas e nordeste e norte do que hoje conhecemos como Rondônia, ainda no século XIX.

O fato é que a desigualdade, concentrada nos centros urbanos da Amazônia e capilarizada pelos territórios enquanto reprodução de sistema de acumulação, com os dados apresentados sobre desmatamento acima, assevera com a rápida expansão da Covid 19. O contágio e a doença acompanham a velocidade dos processos de acumulação e despossessão na região, bem como as decisões políticas de planejamento e ordenamento territorial, sejam rurais ou urbanas, que governam e manejam os povos e as terras, e acabam determinando sua morte objetiva ou de forma correlata.

 

Maraã(AM), sede municipal, 2019. Arquivo de campo, Geraldo Mosimann da Silva

Em Belém, cidade mais densamente povoada do Pará, com região metropolitana com aproximadamente 2 milhões de habitantes, o ciclo mais contemporâneo de desmatamento e ocupação da floresta se faz evidente no abismo social, que se reflete no processo de especulação imobiliária. Em grande medida exercida pelos atores do agro-minério negócio, a especulação decorre em precarização da moradia, mesmo aquelas adaptadas ao modo de vida ribeirinho, e na dificuldade de acesso e usufruto ao sistema de saúde. Apontada como o próximo epicentro da Covid 19, com quase 6,200 casos confirmados e 660 óbitos dos 1280 provocados pela doença no estado do Pará (Fonte: Secretaria de Saúde Pública do Estado do Pará), apenas 36,1% dos domicílios urbanos na cidade estão em vias públicas com urbanização adequada (Fonte: IBGE Cidades). O acesso à água de mais de metade da população da cidade ainda é feito diretamente nos rios, mas nem 50% desta água é tratada, e em boa parte da região metropolitana seria imprópria para este uso. Se considerarmos os dejetos domiciliares e rejeitos industriais, pensando que Belém está a jusante (rio abaixo) de algumas plantas da indústria de alumínio e caulim, a situação é ainda mais preocupante.

A consolidação do progresso e sua estabilização como urbanização, assim, foi realizada de forma muito desigual. Como em boa parte do mundo, a Covid 19 não atinge a todas as pessoas e grupos sociais da mesma forma. Em regiões onde esta desigualdade já se reproduzia na disputa pela terra, seja na cidade, seja na floresta, ou melhor, nas cidades na floresta, o vírus acentuou e acelerou processos de produção e reprodução dessas desigualdades. Com o verão amazônico chegando, vem a seca na floresta e, com isso, o aumento do desmatamento. Em período iminente de explosão das queimadas e frente a decisões governamentais recentes que flexibilizam o monitoramento, bem como autorizam mudanças normativas para a expansão de processos de ocupação ainda não autorizados na região, a tendência é que o vírus adentre os territórios com seus invasores.

Como nas grandes epidemias que assolaram a região, os fluxos comunidades-cidades, antes navegando apenas pelos rios, agora correrá por estradas, barcaças de minério e de madeira, bem como por garimpos ilegais e seus aviões e máquinas clandestinas, criando o caos no atendimento de saúde das grandes e médias cidades amazônicas. Tal processo reflete a contínua exclusão dos benefícios e de maiores possibilidades de redistribuição dos bônus gerados pelas cidades amazônicas, na verdade, criadas e construídas desde o trabalho e presença de seus povos e comunidades. Embora continuem sofrendo com o ônus continuado de sua despossessão, esses seguem se organizando e lutando para serem vistos e ouvidos. Na floresta ou na cidade, uma das esperanças para combater o vírus da antidemocracia tem sido esta mobilização.

* Marcela é cientista política e trabalha na Amazônia desde 2009 com povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, com especial atenção às suas formas de ocupação e uso da terra e a seus trânsitos e deslocamentos na região. Atualmente coordena o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da UFPA, onde coordena o grupo de pesquisa ReExisTerra. Integra também a rede de pesquisa Propriedades em Transformação e o Grupo Carta de Belém.