Por Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e Observatório de Remoções

No início da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) e com seus efeitos ainda imprevisíveis sobre as comunidades, assentamentos e territórios precários e vulneráveis nas cidades brasileiras, iniciaram-se diversas mobilizações e ações que buscaram a suspensão dos despejos, reintegrações e imissões de posse. Entre elas, no dia 18 de março de 2020, houve uma das primeiras respostas na cidade de São Paulo: a suspensão de mandado de reintegração de posse por conta da pandemia de COVID-19 no processo que tramita na 10ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo. Este processo foi movido pelas empresas proprietárias do terreno Vitacon Participações Ltda. e Cipreste Branco Desenvolvimento Imobiliário Ltda. contra aproximadamente 50 famílias, que moravam em cortiços localizados na esquina da rua Barata Ribeiro com a rua doutor Penaforte Mendes, Bela Vista, região central de São Paulo. As proprietárias adquiriram os imóveis para realizar uma incorporação imobiliária e viabilizar o lançamento de um empreendimento, “VN Ueno”, que com studios de 15 a 25 metros quadrados destinados à locação com pacote de serviços incluídos, serão, de acordo com o site da Vitacon, “uma nova experiência em moradia inteligente para investir na Bela Vista”.

Com a suspensão em vigor, causou estarrecimento a operação de reintegração de posse feita pela equipe das empresas Vitacon e Cipreste Branco, na sexta-feira, 15 de maio, sem mandato judicial. A Justiça já havia suspendido durante a pandemia a remoção das famílias que estavam morando no local, mas, mesmo assim, as empresas agindo de forma contrária à determinação judicial e contando com a presença da Polícia Civil – que não possui competência para esse tipo de operação –, organizaram ação para remover as diversas famílias sem comunicar sua defesa. Alegam que, a pedido de um grupo de moradores, buscaram fazer acordo para saída voluntária dos imóveis, disponibilizando mil reais (R$ 1.000,00) por família e os meios para cumprimento da remoção. Conforme as famílias aceitavam os cheques e retiravam seus pertences, imediatamente a equipe contratada lacrava e demolia parcialmente as casas recém-desocupadas.

As quase 50 famílias, que habitavam até a remoção as duas quadras da Bela Vista, fazem parte dos grupos mais vulneráveis da cidade, que também são os que mais sofrem e sofrerão os efeitos da pandemia. Nessas famílias havia idosos, gestantes, pessoas portadoras de deficiência e pessoas com problemas de saúde – que agora, depois da remoção ficarão ainda mais expostos a complicações em caso de contaminação pelo novo coronavírus.

As proprietárias em seu site afirmam que estão atuando na prevenção da COVID-19, e incentivam as pessoas a fazerem sua parte e a manterem o isolamento social, seguindo as orientações dos órgãos responsáveis. Porém, na remoção das famílias realizada no dia 15 de maio sem mandado judicial, sem a presença dos órgãos públicos responsáveis que garantem a segurança dos ocupantes e sem qualquer autorização judicial que permitisse a operação, criaram aglomeração nas ruas, sem qualquer medida de proteção às famílias. Apesar de afirmarem que “agora, mais do que nunca, a nossa casa é o lugar mais seguro do mundo”, não hesitaram em viabilizar a remoção dos ocupantes, muitos inclusive pegos de surpresa pela operação, deixando todas as famílias sem um local seguro para morar. Tudo isso durante a pandemia do novo coronavírus.

A operação de remoção das famílias

A operação de remoção organizada pelas proprietárias no dia 15 de maio teve início às sete horas da manhã, quando os moradores amanheceram com a Polícia Civil estacionada em frente às suas casas e com diversos funcionários equipados prontos para demolir os imóveis em que viviam.

Informada por um morador do que estava acontecendo, a defesa do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, entidade conveniada à Defensoria Pública do Estado de São Paulo e responsável pela elaboração da defesa jurídica dos moradores, chegou aos imóveis localizados na Rua Barata Ribeiro com muitos já demolidos e muitas das famílias já dispersas pela cidade.

Portanto, só depois de passarem horas de exposição e de aglomeração sem seguir nem respeitar os protocolos de segurança à contaminação pelo novo coronavírus somado ao desgaste e preocupação causados pela remoção, os moradores passaram a ser orientados acerca de suas opções: aceitar o acordo proposto pelos representantes das proprietárias; buscar outro acordo tratando com os advogados da causa e comunicando o juiz responsável pelo processo relatando o ocorrido; ou aguardar o término da pandemia e a operação de reintegração de posse que seria agendada pelo 7° Batalhão da Polícia Militar. Diante da situação de vulnerabilidade socioeconômica das famílias residentes do local e das lacrações e demolições de parte dos imóveis que já havia ocorrido, praticamente todas optaram pelo acordo apresentado pelos representantes das proprietárias: aceitar um valor em troca de sua saída imediata.

Os representantes da incorporadora ficaram em um estacionamento próximo aos imóveis, com  seguranças, fechando acordo casa por casa, negociando quanto seria destinado no total, para as famílias moradoras de cada imóvel. A partir deste valor total por imóvel, cabia então as famílias residentes, por critérios e acertos negociados entre elas, determinar quanto cada uma receberia deste valor, tendo em vista o cálculo inicial estipulado pelas proprietárias de mil reais por família. A partir desses acertos internos, algumas famílias receberam mais outras menos, dependendo dos critérios adotados pelas famílias residentes nas negociações de cada imóvel.

Ao estabelecerem os valores finais por família, estas assinavam um recibo e recebiam o valor em cheque, em seguida os imóveis eram parcialmente demolidos e lacrados. Os primeiros cheques distribuídos pelos representantes da incorporadora não estavam sendo aceitos na agência do banco Itaú designada por eles, o que gerou ainda mais desespero às famílias. Foi necessária a troca de todos os cheques para viabilizar o acordo. A última família recebeu o valor combinado por volta das 19 horas e 30 minutos, após mais de 12 horas de operação e aglomeração.

Ao longo de todo dia também, alguns moradores que mantinham sua residência no local e estavam fora trabalhando ou cumprindo alguma obrigação cotidiana foram surpreendidos com a ação ao retornar para casa tendo seus pertences retirados do imóvel sem nem poder se opor à demolição de sua residência.

Sem qualquer preocupação com a saúde dos ocupantes, a ação das proprietárias gerou grande aglomeração na rua, expondo famílias, que em sua maioria não possuíam os equipamentos básicos de proteção individual. Os únicos com equipamentos mínimos de proteção eram os representantes da incorporadora e seus funcionários.

Por mais que as empresas envolvidas aleguem que não possuem notícias da presença da Polícia Civil no local e que se tratava de operação de desocupação voluntária dos imóveis, o fato é que a maioria das famílias foi pega de surpresa e amanheceu com os imóveis sendo esvaziados, com a presença de caminhões e ferramentas fazendo a limpeza e demolição de suas casas e a presença da Polícia Civil do outro lado da rua acompanhando a operação.

A ação realizada no dia 15 de maio indica que mesmo com a determinação judicial e a suspensão da reintegração de posse em meio à pandemia, os proprietários de imóveis ocupados buscam por meios próprios a remoção e retomada desses locais.

Vendido como espaço de convivência, entregue a uma política higienista

Em seu site, o empreendimento que deverá ser construído no local se apresenta como “um conceito hub urbano para ter tudo o que é necessário a poucos passos. Isso significa ter a disposição uma estrutura completa de trabalho, exercícios físicos, e convivência, e ainda estar muito perto dos principais pontos da cidade”. Ainda de acordo com o próprio site, trata-se muito mais de uma oportunidade para investidores garantirem uma rentabilidade futura para seus capitais, apostando em plataformas de locação temporária – como o Airbnb – do que efetivamente mais opções de espaços residenciais no centro da cidade.

Para poder propiciar esta nova fronteira para os capitais investidos no imobiliário e construir “novas experiências de moradia”, a incorporadora não hesita em expulsar famílias de baixa renda do centro e piorar suas já precárias condições de moradia dispersando-as pela cidade em plena pandemia.