Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por Débora Ungaretti, Pedro Mendonça, Fernanda Moreira e Raquel Rolnik*

Está tramitando no Congresso, agora em discussão na Câmara, projeto de lei que tem como um dos focos a proteção dos locatários residenciais, evitando que sejam despejados em meio a pandemia do novo coronavírus e fiquem sem ter onde morar.  O projeto deve definir regras claras, que ajudem tanto locatários quanto locadores a se planejar no longo prazo possibilitando, inclusive, renegociações das dívidas a partir de outubro de 2020. Esta aliás tem sido a política adotada em vários países e cidades assoladas pela pandemia.

Conforme já discutimos antes (veja aqui e aqui), defendemos que essa proteção seja ainda mais ampla, considerando diferentes situações sociais, econômicas e territoriais, e garanta a suspensão não só das liminares, mas de todos os despejos, bem como a possibilidade de que os pagamentos de aluguel residencial sejam reduzidos ou suspensos para quem perdeu renda durante a crise, podendo ser retomados a partir de outubro de forma parcelada.

Se, de um lado, assegurar a proteção às famílias contra despejo em tempos de pandemia é fundamental, de outro, tem-se levantado a preocupação com locadores que dependem da renda do aluguel para subsistência, suprindo a ausência de outros mecanismos de seguridade social. Por isso, é necessário entender qual é o quadro atual da situação dos despejos e sua iminência, uma vez que, como veremos adiante, esta já era uma questão muito relevante antes da pandemia.

 O LabCidade realizou um levantamento completo das sentenças de despejo em primeiro grau no banco de sentenças do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Foram tabulados dados de 2013 a 2018, somando 280.000 sentenças, e os resultados nos oferecem uma leitura sobre a importância da suspensão dos pagamentos e possíveis impactos caso essa medida não seja tomada. (Para mais detalhes, clique aqui)

A judicialização tem um impacto significativo na segurança habitacional no estado de São Paulo (veja gráfico 01 abaixo). Entre 2013 e 2018,  mais de 200 mil sentenças em processos de despejo foram proferidas contra pessoas físicas no estado (desconsiderando processos contra pessoas jurídicas e explicitamente não residenciais), somando 80,4% do total do universo total de despejos. São, em média, 14,3 processos de despejo por mil domicílios – mas esse número chega a 18,5 na Grande São Paulo (1ª RAJ).

Gráfico 1 – Processos de despejo movidos de pessoa física/não identificada contra pessoa física/não identificada, excluídos os explicitamente não residenciais: sentenças por mil domicílios (IBGE 2010). Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2020.

Neste universo, a judicialização leva a uma sentença favorável ao despejo na maioria dos casos (veja gráfico 02 abaixo).  36% destes processos foram julgados procedentes – ou seja, levaram à expulsão dos locatários. Outros 38% foram homologados, ou seja, as partes chegaram a um acordo: provavelmente os locatários pagaram as dívidas ou parte delas ou saíram voluntariamente do imóvel. Apenas 1% dos processos é julgado improcedente, indicando que o locatário ficou no imóvel. Aqui analisamos apenas as sentenças, mas liminares emitidas na tramitação do processo podem ter antecipado a desocupação dos imóveis.

Gráfico 2 – Distribuição do teor das sentenças em primeiro grau em processos de despejo, exceto os explicitamente não residenciais, no estado movidos de pessoa física/não identificada contra pessoa física/não identificada. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2020.

A maioria dos despejos são contra pessoas físicas (veja gráfico 3 abaixo). Os processos de despejo contra pessoas jurídicas são minoria, e tem maior concentração na Grande São Paulo (1ª RAJ). Isso significa que, apesar do amplo universo de situações contratuais de locação, as pessoas físicas são as maiores afetadas por despejos, o que justifica uma proteção, mesmo que de forma genérica.

No entanto, são também pessoas físicas que, em sua maioria, entram com ações de despejo (também no gráfico 3 abaixo). Por isso, é preciso discutir o aluguel enquanto fonte de renda essencial para locadores.

Gráfico 3 – Distribuição dos processos de despejo no estado, por tipo das partes (PJ: Pessoas Jurídicas, PF: Pessoas Físicas/Não identificadas), excluídos processos cujo imóvel sub judice é explicitamente não residencial. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2020.

Processos em que locadores acessam a justiça gratuita – indicando que tais locadores que não conseguem arcar com os custos do processo judicial e que potencialmente dependem do aluguel como única fonte de subsistência – são minoria. O percentual de locadores de baixa renda deve ser maior no mercado de aluguéis informal – que infelizmente não pode ser capturada no banco de sentenças.

Nesses casos de locadores dependentes, é desejável uma ação do executivo em assegurar a sua subsistência, o que poderia solucionar o impasse sem destruir o impacto positivo do projeto de lei em discussão na prevenção de despejos. Para esse grupo, seriam necessárias outras políticas de garantia de renda para assegurar simultaneamente a subsistência dos locadores e a permanência a seus locatários.

Tal impasse decorre da ausência de outros mecanismos de seguridade social mesmo em tempos normais. Locadores de baixa renda sem acesso a benefícios como aposentadoria ou renda básica acabam pressionando  o preço dos aluguéis, dificultando o acesso à moradia dos que têm menos renda. Por isso a importância de um auxílio emergencial para esse grupo. A suspensão geral dos despejos, contudo, deve mirar na proteção  dos locatários, pois são eles que correm risco de ficar sem casa neste momento de crise, em que o isolamento social – fique em casa! – é essencial.

Gráfico 4 – Distribuição dos processos de despejo em justiça gratuita, excluídos processos movidos por pessoas jurídicas. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2020.

O aumento dos preços do aluguel nos últimos anos causou uma pressão sobre as rendas familiares mesmo antes da pandemia. A partir de uma amostra de cerca de 20% das sentenças judiciais de despejo cujo valor do aluguel é declarado, foi possível identificar um aumento do preço dos aluguéis acima da média do Índice FIPE ZAP nos últimos anos, em especial na Grande São Paulo (1ª RAJ). Isso sugere que muitos locatários absorveram os aumentos dos aluguéis nesse período com um maior comprometimento da sua renda, como apontam também os resultados de 2018 da Pesquisa de Orçamento Familiar.

Ainda, o aumento do impacto do aluguel sobre a renda não é distribuído igualmente no território. Nas áreas com preços de aluguel elevados, como os grandes centros urbanos, se acirram tanto o problema dos despejos quanto o impacto da suspensão de pagamento para quem tem o aluguel como fonte de renda. Por isso, a ausência de dispositivos de proteção a contratos de aluguel pode ter efeitos mais graves nos centros urbanos, justamente onde se concentram os casos de Covid-19.

Isso reforça a importância da suspensão e renegociação do pagamento dos aluguéis para diminuir a pressão do aluguel sobre as rendas familiares, em especial sobre as rendas que foram diminuídas ou cortadas durante a crise.

Gráfico 5 – Média do valor do aluguel nos processos de despejo, exceto os movidos por ou contra pessoa jurídica. Elaboração: Pedro Mendonça, LabCidade, 2020.

Lembramos que esses dados não se referem ao mercado de aluguéis por inteiro, mas retratam justamente o que se quer evitar: o despejo. Estamos falando de dezenas de milhares de famílias que podem acabar ameaçadas e removidas de suas casas durante a crise – apenas no estado de São Paulo e apenas no mercado formal! A ampliação da proteção de locatários no PL, com a possibilidade de suspensão do pagamento de aluguéis residenciais e suspensão de todos os despejos, é essencial para evitar que isso aconteça.

* Doutoranda na FAU-USP, pesquisadora do LabCidade;
Graduando na FAU-USP, pesquisador do LabCidade;
Pós-doutoranda na FAU-USP, pesquisadora do LabCidade;
Professora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade;