Imagem: Fabio Braga/Folhapress

*Por Raquel Rolnik

A Praça Coronel Custódio Fernandes Pinheiro, não por acaso, é conhecida como Praça do Pôr do Sol. Trata-se de uma área verde, que também é um mirante, localizada no Alto de Pinheiros, bairro residencial de São Paulo, de onde se pode desfrutar de uma bela vista do vale do Rio Pinheiros, que ainda é aberto o suficiente para vislumbrar um belo pôr do sol. Para além dos moradores do bairro que sempre ocuparam o local, sobretudo nos finais de tarde dos finais de semana, a praça passou a atrair uma verdadeira multidão, sobretudo de jovens, que vindos da cidade toda, ali atravessam as madrugadas. Incomodados com esta nova forma de apropriação da praça, uma parte dos moradores do entorno da Praça começou a pressionar a Prefeitura para que a área fosse fechada, o que se concretiza agora, em plena pandemia, sob a justificativa de “evitar aglomerações”. Um tapume, seguido de uma tela de galinheiro, aparece então instalado no local, uma não solução que subverte o projeto da praça e o sentido do espaço público.

Projetada na sua versão atual nos anos 70, a Praça é projeto de duas grandes mulheres do paisagismo brasileiro: Miranda Magnoli e Rosa Grena Kliass. Miranda foi uma das criadoras, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, da área de conhecimento e pesquisa de Paisagismo, além de ter sido responsável pela equipe de projetos da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da prefeitura de São Paulo por mais de 40 anos. Rosa Kliass também é uma das grandes referências para o paisagismo no país, tendo sido fundadora da Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas, a autora de projetos como a reforma do Vale do Anhangabaú de 1981 (em conjunto com Jorge Wilhelm) e o projeto paisagístico do Parque da Juventude. Rosa foi a primeira mulher a receber o colar de ouro do IAB, que reconhece e premia grandes nomes da arquitetura brasileira.

A praça de 28.000 metros quadrados surgiu como uma das áreas verdes de um loteamento residencial de alta renda projetado pela Companhia City, implantado a partir do final dos anos 30, no Alto de Pinheiros. As paisagistas aproveitaram a topografia para maximizar o potencial de visualização do entardecer, e desenvolveram o projeto paisagístico de forma a torná-la um mirante, definindo verdadeiras arquibancadas onde se pode confortavelmente relaxar e assistir às luzes do fim do dia.

Mais recentemente, o espaço começou a atrair muito mais gente do que só os moradores do bairro. Pessoas de toda a cidade e até mesmo de fora dela, de todas idades e em qualquer horário. A Praça tornou-se (também) espaço de baladas ao ar livre e outros rolês nas madrugadas, o que passou a gerar um enorme conflito com os moradores do entorno, incomodados com o barulho, consumo de álcool e outras drogas, e lixo espalhado pelo local.

Desde então, instaurou-se um conflito a respeito do destino e forma de gestão da Praça. Tentativas de gradeá-la já começaram a acontecer desde 2015, quando o Decreto 56.333 transformou a praça em parque, o que abriria a possibilidade de fechá-la (na medida que parques são fechados e praças não) e com isso criar uma condição de controle, impedindo a nova forma de apropriação, principalmente noturna.

Sendo parque, o local passaria então para a gestão da Secretaria do Verde e Meio Ambiente, não mais da Subprefeitura, e passaria a contar com Conselho Participativo, assim como os demais parques da capital. O Conselho Participativo eleito, entretanto, foi povoado por representantes pró e contra a ideia de cercamento e restrição de acesso. Opositores sistemáticos ao gradeamento da praça lutaram por outra solução: seria montar uma estrutura muito melhor de vigilância, controle e limpeza? Ainda neste âmbito, graças a doação de moradores, foi instalado um contêiner como ponto de apoio a uma estrutura de serviços e gestão da praça, mas essa estrutura nunca foi instalada. O decreto de transformação em parque foi revogado na gestão seguinte — Dória/Covas — e o conselho participativo desfeito.

Imagem: Mathilde Missioneiro/Folhapress

Durante a pandemia, a pedido da Associação Amigos do Alto de Pinheiros (SAAP) e Associação de Moradores de City Boaçava, a prefeitura instalou enormes tapumes, e no início de 2021 foi iniciada uma obra de cercamento, com a justificativa de se evitar aglomerações. Além do custo do aluguel de tapume por vários meses, a instalação da tela de galinheiro cercando a praça custará quase 653 mil reais para os cofres públicos.

Num processo bastante secreto, sem nenhum debate público, em meio à maior crise sanitária, econômica e fiscal, a Prefeitura prioriza um gasto bastante discutível do ponto de vista de ações prioritárias para o combate e prevenção da covid-19. Por que não alocar recursos (tão escassos) para melhorar as condições de segurança nas viagens no transporte público? Já discutimos anteriormente os resultados da nossa pesquisa (Circulação para trabalho explica concentração de casos de Covid-19), que mostram que o transporte coletivo é uma dos maiores fontes para a contaminação, e isso exigiria políticas públicas que aumentassem a segurança para quem não pode deixar de pegar ônibus, trem ou metrô. Muitos também questionam o que justificaria deixar shoppings abertos e parques fechados, quando os espaços ao ar livre são bem mais seguros do que os espaços fechados para evitar a disseminação do vírus.

É claro que a Praça Pôr do Sol precisa de intervenções, cuidados, gestão. Justamente por ser um espaço público, de todos e para todos, ela não pode acumular sujeira, lixo, ser depredada ou gerar insegurança. Mas enfrentar estes desafios instalando uma grade contraria a base de seu projeto — abertura para o exterior — com uma intervenção de baixíssima qualidade que não resolve o conflito, apenas marca — com uma cerca — as fronteiras de quem pode e quem não pode existir no espaço público, fortalecendo um urbanismo excludente.

*Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Texto originalmente publicado no UOL