Na oitava edição do Podcast “Pela Cidade”, Raquel Rolnik, professora da  FAU-USP e coordenadora do LabCidade, conversou com Carmen Silva e sua  filha Preta Ferreira. Carmen é líder do Movimento dos Sem Teto do Centro  de São Paulo (MSTC) e uma das maiores lideranças na área de moradia no  Brasil; Preta (Janaína Ferreira da Silva), sua filha, é atriz, cantora,  produtora cultural e apresentadora. Em 2019, Preta passou 109 dias presa na Penitenciária Feminina de Santana, em SP,  num processo sem provas que busca  criminalizar as ocupações de moradia em São Paulo.

A conversa foi realizada no dia 21 de novembro, no LabCidade (na FAU, USP) e teve um pouco menos de 1h. Carmen contou de sua trajetória de vida, das dificuldades como mulher baiana e preta de se estabelecer na cinzenta capital paulistana e de como foi se inserindo no centro da cidade e nos movimentos de moradia, ainda nos anos 1990. Já Preta falou de sua atuação na área artística e da relação das ocupações com diversas ações culturais. Comentou ainda da injustiça de sua prisão e de como, depois de solta, pretende retomar seus projetos na aŕea da música e do cinema.

Você pode escutar o podcast no Spotify ou no Youtube, a sua escolha.

OBS: áudio em stéreo, melhor qualidade de áudio com fones (os 2) ou em caixas de som.

Carmen, Raquel, Preta e Renato (LabCidade)

PELA CIDADE #8: Preta Ferreira e Carmen Silva
Apresentação e mediação: Raquel Rolnik
Entrevistada: Preta Ferreira e Carmen Silva
Trilha de abertura: Bruno Bonaventure
Edição e Produção: Leonardo Foletto, LabCidade
Apoio: Renato Abramowicz e Gisele Brito, LabCidade

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Acompanhando o podcast, Raquel também escreveu um texto, em sua coluna no UOL, que debate mutias questões sobre as ações inócuas da política de moradia do Governo do Estado de SP.

Criminalizar, verbo intransitivo 

Criminalizar certos corpos e práticas é uma escolha política, em um universo complexo e atravessado por ambiguidades.

O Conselho Estadual de Habitação de São Paulo acabou de votar uma resolução dizendo que “movimentos sociais, grupos sociais e assemelhados” que participam, direta ou indiretamente, de ações de ocupação de imóveis não poderão ser atendidos pela política habitacional do governo estadual. Embora de efeito concreto imediato pouco relevante, como veremos adiante, esta resolução ressoa com o recente debate levantado na sociedade brasileira desde o massacre de nove jovens em uma ação de repressão a um baile funk em Paraisópolis. Trata-se, nos dois casos, de uma escolha, em um universo complexo e atravessado por ambiguidades, de determinados sujeitos e determinadas práticas como “criminosas” – para, ato contínuo, reprimi-las ou puni-las.

Vamos aos fatos: o Brasil é um país de posseiros. São milhões de pessoas no campo e na cidade cujo vínculo com o território que ocupam não é de propriedade individual, escriturada em cartório. Nas cidades, estamos falando de uma maioria de moradores de favelas e bairros autoconstruídos que se enquadram nesta situação e que sequer conhecemos com exatidão. Não conhecer com exatidão este universo ajuda a ocultá-lo, e isso é fundamental para manter uma “ordem” urbana na qual a posse aparece como exceção, ou desvio, e não a regra. Mas também ajuda a construir um terreno de ambiguidade. Apesar de desviante, não necessariamente a posse é objeto de repressão ou punição. Como trata de maiorias urbanas com poder de voto, a situação de ambiguidade permite que ora estes assentamentos sejam reconhecidos e “premiados” com investimentos públicos, sempre limitados e intermediados politicamente, ora removidos sem qualquer compensação ou atendimento digno.

Boa parte dos territórios populares das cidades brasileiras estão nesta condição e, além disto foram fruto de ações coletivas: igrejas, associações, grupos. Ora, o que significa neste contexto então uma Secretaria de Habitação afirmar que organizações e entidades que ocupam imóveis estão impedidas de acessar políticas habitacionais? O objetivo parece não exatamente definir quem pode ou não acessar políticas e programas, mas marcar, através de um ato de criminalização, a sinalização de punição de certos sujeitos. O que abre espaço para ações de repressão, como a prisão ou a violência policial, exatamente como ocorreu em Paraisópolis.

Por outro lado, do ponto de vista da política habitacional estadual vigente, o Programa Nossa Casa, promovido pela Secretaria de Habitação e pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), os ocupantes de baixa renda de imóveis não terão acesso à moradia, mas os não ocupantes também não, já que o programa subsidia e apoia uma produção de moradia para rendas mais altas do que o grupo que mais necessita moradia. A política estadual é praticamente inexistente em relação à demanda de mais baixa renda, que é justamente a demanda que é mais necessária nesse momento, não importando que ocupem ou não imóveis abandonados.

Para que serve então uma resolução como essa? Se ela é inócua e inútil do ponto de vista concreto, o seu sentido é basicamente “transitar” o verbo criminalizar, marcando certos corpos, certas práticas, especialmente daquelas pessoas que se organizam para lutar por seus direitos.