Foto: Ciclocidade

Letícia Lindenberg Lemos*

Marina Kohler Harkot: pessoa maravilhosa, feminista, ciclista, pesquisadora, engajada na luta por um mundo mais humano. Marina cruzou meu caminho lá por 2014, me parou na ciclovia e elogiou a minha bicicleta. Ganhou meu coração naquele momento, mas seguimos, cada uma para o seu lado. Dois dias depois, em um debate organizado pela Ciclocidade, alguém se senta ao meu lado dizendo “Ah! Vi sua bicicleta linda lá fora e vim te procurar!”. Ficamos lá, conversando como se fossemos amigas antigas botando o papo em dia. Essa era a Marina, uma pessoa incrível que conseguia tocar e agregar quem estivesse por perto dela.

Em uma das inúmeras conversas que tivemos surgiu o desejo dela de fazer mestrado sobre mobilidade por bicicleta e gênero e a levei para conhecer a Paula Santoro, professora cuja disciplina eu fazia monitoria e com quem eu trabalhei em seguida no LabCidade FAUUSP. Pouco depois recebi um convite de um colega argentino para escrever um artigo sobre uso da bicicleta por mulheres em São Paulo para um dossiê que ele estava organizando sobre mobilidade e gênero [Mulheres, por que não pedalam? Por que há menos mulheres do que homens usando bicicleta em São Paulo, Brasil]. A partir disso, nos entrosamos também no campo de pesquisa. Me juntei a ela e a Priscila Costa na coordenação da pesquisa “Mobilidade por bicicleta e os desafios das mulheres de São Paulo” dentro do GT Gênero – espaço que ela mesma havia participado da criação. Contando com pouquíssimos recursos, foi a primeira vez que uma pesquisa levantava dados sobre a relação do uso da bicicleta com mulheres em São Paulo.

Esse foi só o começo de um longo, prazeroso e produtivo caminho que se seguiu por anos e cujos frutos estão sendo colhidos ainda hoje. Juntas, Marina, Paula e eu estamos encerrando esse ciclo de pesquisas que se iniciou na pesquisa do GT Gênero com um artigo para o livro “Cycling Societies: emerging innovations, inequalities and governance”, que será publicado pela Routledge no início de 2021, e dedicado pelos editores à Marina.
Marina lutava com seu corpo e sua mente por uma cidade mais humana, mais gentil. Por uma ironia de muito mal gosto, seu ciclo foi encerrado exatamente pela força e brutalidade que ela buscava mudar. No último dia 8, voltando para casa pouco depois da meia-noite, um motorista em sua SUV de mais de 1 tonelada e meia a atropelou e fugiu sem prestar socorro. Queremos justiça! E a justiça que queremos inclui a cidade gentil com a qual ela sonhava.

Marina era uma ciclista urbana muito experiente e não era displicente. Sua morte mostra que precisamos, urgentemente, repensar a cidade que temos e a política para uso cotidiano de bicicletas que tem sido conduzida pelas últimas gestões públicas. É necessário que a gente pare de contar quantos quilômetros de ciclovias e ciclofaixas cada gestão fez e volte a olhar para quantas pessoas vamos salvar com políticas públicas amplas e sistêmicas. Precisamos olhar para a bicicleta – e para a mobilidade de forma geral – para além da circulação, do deslocamento. Precisamos olhar para o uso da cidade – seja estático ou em movimento – a partir das pessoas, suas experiências e vulnerabilidades.

Na Av. Sumaré – onde Marina foi atropelada – tem uma ciclovia no canteiro central, portanto, isolada. Isolada não somente dos perigos dos veículos motorizados, mas da cidade, da vida que está do outro lado da avenida, nas calçadas, nos imóveis. Ao restringir a circulação de ciclistas a canteiros centrais, os gestores públicos estão excluindo e segregando essas pessoas. Há muitos anos pesquisadores e cicloativistas, incluindo eu mesma e a própria Marina, reafirmam que o canteiro central não é o melhor lugar para uma ciclovia exatamente por deixar aqueles a quem o espaço é destinado sem acesso aos usos nos bordos da via, sem os “olhos da cidade”, como era colocado por Jane Jacobs, e sem acesso a socorro, por exemplo em casos de assalto ou agressão sexual.

Apesar disso, o canteiro central é proposto desde a década de 1980 – quando foram publicados os primeiros planos para infraestrutura para bicicleta – como local ideal para implantar uma ciclovia. A solução, que supostamente protegeria o ciclista, é uma cortina de fumaça: serve de fato para manter o espaço do carro intocado e sem o incômodo de ciclistas atrapalhando a fluidez. Além disso, o que fazer com as vias sem canteiro central? Nessas situações frequentemente os planos indicavam a calçada ou mesmo a decisão de não oferecer nada de infraestrutura. De todo modo, não podemos esperar que todos os 17 mil km de vias de São Paulo tenham ciclovias, temos pressa, temos urgência, estamos morrendo!

As ruas – incluindo o “leito carroçável”, que é como a engenharia de tráfego se refere à área onde os carros reinam – precisam ser lugares de multiplicidade e de convivência com as diferenças. Precisamos, como sociedade e independentemente de orientação política, almejar espaços que permitam que as pessoas possam usar e circular, por onde se acharem mais confortáveis dentro da própria perspectiva, de forma pacífica e segura, sem que as suas vidas estejam em risco. Precisamos olhar para a vida humana e para as questões que ceifam essas vidas, e compreender, coletivamente, que todas as vidas importam. Que cada pessoa que morreu vítima de violência no trânsito era querida por família e amigos, e que elas também mereciam a possibilidade de estarem vivas. Com isso, resgataremos a nossa humanidade!

O ideal que temos que perseguir é que todos possam compartilhar a via, mas precisamos considerar que carro é potencialmente letal. Quanto mais alta a velocidade de veículos pesados – como carros, ônibus, caminhões – maior a fatalidade ou sequelas graves no caso de uma colisão. A velocidade limite para garantir uma baixa fatalidade é 30km/h. Assim, ruas realmente locais, onde o acesso aos lotes – e não o fluxo de passagem – seria prioritário, precisam ter velocidades abaixo de 30km/h, espaços com geometria restritiva (o famoso acalmamento de tráfego) e um pleno compartilhamento do espaço público (calçada + “leito carroçável”) – além de educação e fiscalização para promover essa convivência pacífica.

Ato de apoio à Marina em São Paulo, Pacaembú. Letícia Lemos

À medida que a prioridade da via passa de acesso para fluxo, a velocidade regulamentada sobe e mais medidas de segurança precisam ser adotadas. Em uma via na qual veículos motorizados circulam a 50km/h é necessário garantir proteção para usuários mais vulneráveis. Mas essa proteção não precisa ser uma segregação plena (como isolar o ciclista no canteiro central), tampouco resolve encher de SAMU (medida adotada no início da gestão Doria para o aumento das velocidades das marginais). A proteção precisa ser algo que consiga dar conta de uma diversidade de vulnerabilidades, de medos, de inseguranças e, também, de desejos. Está claro que a ciclovia no canteiro central da Sumaré não se encaixa nisso. Relatos de problemas de segurança são vários.

A pesquisa da Marina nos mostra que há inúmeras camadas de opressão que afastam as mulheres do uso da bicicleta. As questões que ela levantou e que debatia incluem a ideia, que vem desde a infância, de que esporte, atividade física e mesmo a bicicleta são “coisa de menino”. As dificuldades são ampliadas com a sobrecarga de responsabilidade de trabalho reprodutivo sobre mulheres (e meninas, infelizmente). Aí temos as exigências de aparência física, como roupa, sapato, maquiagem, precisar estar alinhada. E, sobre tudo isso, temos assédio e variadas formas de violência sexual no espaço público. Todas essas questões e tantas outras são pano de fundo para uma mulher decidir usar ou não uma bicicleta, que horas vai sair, o caminho e o modo que vai usar.

A decisão de Marina de estar na rua, à noite, andando de bicicleta é uma decisão política. É por todas as mulheres e por aqueles mais vulneráveis. É pela luta por uma cidade para todas as pessoas. Ela estava na rua, onde ela escolheu estar, portanto onde deveria estar. O errado na equação não é ela ou seu lugar, mas a falta de respeito e humanidade que a nossa cidade promove. Marina foi tirada de nós, mas sua luta segue em nós. Por Marina, pela vida! Marina vive em mim, vive em nós.

*Letícia Lindenberg Lemos é arquiteta, urbanista, mestra e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela FAUUSP. Trabalhou como pesquisadora do ObservaSP junto ao LabCidade da FAUUSP entre 2015 e 2018.

stêncil por Juliana Calheiros