O Observatório de Remoções atualizou o painel para visualização dos dados sobre as remoções na Região Metropolitana de São Paulo. A ferramenta foi desenvolvida no âmbito de uma parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e reúne dados do mapeamento colaborativo das remoções e ameaças de remoção na Região Metropolitana, entre janeiro de 2017 e junho de 2023.

A grande novidade é que essa atualização também inclui informações sobre despejos e reintegrações de posse do Banco de Sentenças em primeiro grau do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), obtidos a partir de técnicas de mineração de dados, o que vem possibilitando uma aproximação quantitativa do universo de casos judicializados.

O projeto é coordenado pelo LabCidade (FAU-USP) e atualmente desenvolvido com o Grupo de Pesquisa Transborda (UNIFESP). A partir destes dados, apresentamos um diagnóstico das remoções coletivas e dos conflitos de posse e de aluguel em São Paulo, com o objetivo de identificar e compreender, em diferentes escalas, os impactos proporcionados pelas remoções; e sistematizar e compartilhar informações para fortalecer a resistência dos atingidos contra políticas e projetos urbanos que implicam em processos de despossessão e violação de direitos.

O resultado do mapeamento colaborativo das remoções não contém e nem pretende conter todo o universo de processos de remoções na RMSP para atender seus objetivos. Os dados registrados não fornecem a escala absoluta das remoções, nem podem ser usados para verificar sua intensificação ou relaxamento – visto que limitações de alcance das próprias ferramentas de registro do processo podem interferir na leitura. A versão atual do mapeamento das remoções tem como principal ganho suprir uma lacuna das versões anteriores, que continham apenas os casos mapeados colaborativamente e prenscindia de uma cobertura completa.

A partir da leitura quantitativa, baseada nas sentenças do TJSP, é possível compreender uma dimensão ampliada dos conflitos fundiários na RMSP. Entretanto, ainda sobram algumas lacunas. Por um lado não podemos afirmar que esse é o universo, pois indica apenas os conflitos judicializados e não permite separar com absoluta precisão todos os conflitos habitacionais de outros tipos de disputas.

E, por outro, as informações dispostas no banco de sentenças não nos permite identificar o número de pessoas/famílias atingidas e quando a remoção de fato ocorreu, já que a data da sentença não corresponde necessariamente ao momento do despejo, que, normalmente, costuma ocorrer antes.

Uma atualização sobre as dinâmicas em curso

Com base nestes métodos, o Observatório de Remoções identificou que entre dezembro de 2022 e junho de 2023, pelo menos 552 famílias foram removidas e outras 8.027 estão ameaçadas de despejo na Região Metropolitana de São Paulo. De acordo com o balanço semestral do período, desde a atualização anterior, divulgada em novembro de 2022, 12 novas remoções foram identificadas, elevando para 41.308 o total de famílias removidas nos últimos seis anos. O número de famílias ameaçadas também subiu para 231.420 atingidas.

Apesar de já alarmantes, a tendência é que o total de famílias que perderam suas casas ou estão ameaçadas seja ainda maior. Os dados, aqui subestimados, referem-se apenas às denúncias e dados coletados pelo Observatório de Remoções.

O período analisado também corresponde ao “regime de transição” estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para a retomada das desocupações coletivas, como parte da última decisão no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828. O instrumento jurídico manteve suspensas as remoções coletivas entre julho de 2021 e outubro de 2022. A partir de então, a Corte determinou a criação de Comissões de Conflitos Fundiários nos Tribunais de Justiça, de todo o país, para o tratamento das questões fundiárias coletivas, bem como o monitoramento e acompanhamento das ações possessórias e petitórias.

Em São Paulo, esse papel foi assumido pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP). O órgão já existia desde 2014, mas só realizou sua primeira reunião após a pandemia de Covid-19, no dia 2 de março.

A forma como o “regime de transição” vem sendo operacionalizada pelo GAORP, no entanto, não tem protegido casos de despejo (individuais e coletivos), nem as ocupações em “áreas de risco” e aquelas que se constituíram após o marco temporal de 31 de março de 2021, conforme já identificamos nos artigos “Frente de expansão imobiliária no Centro de São Paulo intensifica a expulsão de não proprietários” e “Categoria ‘risco’ é usada para remover e criminalizar ocupações no Centro de São Paulo”. A atuação do grupo também tem sido caracterizada pela inércia dos órgãos do poder público em construir efetivamente soluções para os conflitos.

TJSP: um motor de remoções

O mapeamento colaborativo também informa que a principal justificativa mobilizada para a remoção, entre os casos em que foi possível identificá-la, está o conflito de posse. O dado refere-se às sentenças relacionadas à reintegrações de posse, esbulho, turbação e ameaça, coletivas e individuais que correspondem a 62,5% dos processos levantados. Ela é seguida pela justificativa de “área de risco” que, embora seja a segunda mais citada nos registros de remoções (13,1%), tem sido muito mais utilizada para ameaçar, com 30,9% de citações nos processos em que há intenção de remoção ainda não efetivada.

O expediente “risco” é mais um agente da transitoriedade permanente e da insegurança habitacional das famílias ameaçadas, como identificamos recentemente nas ocupações Santa Rosa e Liberdade, ambas na região central da capital paulista. Nos dois casos, a categoria tem sido mobilizada por um expediente político que tem respaldado a suspensão de direitos e garantias das mais de 100 famílias que formam as ocupações, além de corresponder a uma tentativa de criminalização das condições físicas dos prédios até seus moradores. Nesses e nos demais casos em que o risco é a justificativa, dificilmente busca-se eliminar ou minimizar as causas deste – com reformas prediais, por exemplo –, mas sim as famílias.

Em paralelo, a série histórica de dados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) revela que o órgão julgou procedentes mais da metade dos casos protocolados desde 2017.

No epicentro dos conflitos de posse está a região central de São Paulo, que também concentra os processos de despejo de locatários residenciais. Esta é mais uma evidência dos processos de expulsão em curso no Centro, que engrossam os números da situação de emergência habitacional na cidade.

As formas populares não proprietárias de morar estão ameaçadas tanto por projetos e políticas públicas de “revitalização” e “requalificação”, que não incorporam estes moradores, quanto pela ação da polícia, que tem atuado mais intensamente coibindo novas ocupações, mas também sistematicamente invadindo as existentes, inclusive aquelas já comprometidas com projetos de regularização e reabilitação.

O novo balanço do Observatório de Remoções aponta que a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana (GCM), juntas, são os principais agentes responsáveis pela execução das remoções mapeadas entre janeiro de 2021 e junho de 2023.

Nesse contexto, o regime de transição está se esgotando para muitas ocupações que tiveram seus processos de remoção suspensos em razão da ADPF nº 828 sem que os conflitos fundiários tenham sido realmente solucionados por políticas públicas habitacionais. Em junho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução nº 510 visando dar maior amplitude às comissões de conflitos fundiários e uma maior ênfase à construção de soluções habitacionais concretas.

Dois meses depois, o TJSP estabeleceu a Portaria nº 10.262/2023 validando a implantação das visitas técnicas e dos protocolos de ações nos termos da resolução do CNJ. Esse aceno ao direito à moradia, porém, não está imune ao histórico dos juízes em favor dos direitos dos proprietários, que têm ainda formado resistência à aplicação da norma.

A defesa da posse no judiciário paulista, muitas vezes a despeito do cumprimento de sua função social, encontrou um forte aliado no chamado agronegócio. Entidades representativas do setor, como Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), questionam no Supremo Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade da Resolução 510 do CNJ pelo seu principal efeito: o de atenuar o quadro de retomada das remoções que se anuncia.