Maior despejo realizado no último trimestre em São Paulo, da ocupação Nova Conquista, zona sul, onde 240 famílias ficaram sem casa. Foto: Benedito Barbosa

Por Aluízio Marino, Guilherme Lobo Pecoral, Larissa Lacerda, Talita Anzei Gonsales, Débora Ungaretti, Júlia do Nascimento de Sá*

Aumento de 31% da população de rua em São Paulo está ligado a despejos e remoções na cidade, que seguiu mesmo com intensa mobilização a partir da Campanha Despejo Zero e da ação no STF de suspensão das remoções durante a pandemia, como aponta a última atualização trimestral (outubro-dezembro de 2021) do Observatório de Remoções.

Se o crescimento da população em situação de rua já era visível para quem circula na cidade de São Paulo, agora há confirmação oficial:  os resultados mais recentes do censo – realizado em 2021 – atestam que a população de rua cresceu 31% em comparação a 2019 (7.540 pessoas a mais nas ruas), um número alarmante para um período tão curto, alcançando um total de 31.884 pessoas. Chama atenção também que 42% dos entrevistados afirmaram viver nas ruas há menos de dois anos. E a situação pode ser ainda pior, já que os dados podem estar subestimados. 

Uma das explicações para este crescimento está relacionada à crise da habitação, que foi ainda mais ampliada no contexto pandêmico. O aumento dos preços dos imóveis e aluguéis somado ao desemprego e perda de renda fez com que milhares de famílias tivessem que escolher entre pagar aluguel ou se alimentar; a ausência de uma política emergencial ampla fez com que muitas delas fossem despejadas. Ao mesmo tempo, a persistência de uma política de remoções, mesmo em um momento de crise sanitária, contribuiu para a multiplicação de verdadeiros “refugiados urbanos”, vivendo em constante situação de transitoriedade e precariedade, que, muitas vezes, encontraram nas ruas e calçadas sua única opção de abrigo.

O perfil da população recenseada reforça essa tese. Em 2021 pelo menos 28,6% dos entrevistados viviam nas ruas com algum familiar, enquanto que em 2019 eram apenas 17,3%. Cabe destacar que a quantidade de famílias em situação de rua hoje pode ser ainda maior, pois essa informação não foi obtida em 33,3% dos entrevistados do último censo. Muitas das famílias inteiras que vivem nas ruas são aquelas que sofreram despejos ou remoções ou que saíram dos imóveis alugados onde residiam por incapacidade de arcar com os aluguéis.

Mapa das Remoções na Grande São Paulo. Para ver em tela cheia, clique no mapa.

A atualização trimestral do Observatório de Remoções, referente ao período entre outubro e dezembro de 2021, registrou a ocorrência de 5 remoções, totalizando pelo menos 256 famílias despejadas contra sua vontade. O número só não foi muito maior graças a Campanha Despejo Zero, organizada por movimentos populares, defensores e advogados populares, organizações sociais e centros de pesquisa. Por meio de sua intensa mobilização, conseguiram garantir a aprovação da Lei Federal 14.216, de 7 de outubro de 2021, que suspendeu remoções coletivas e liminares de despejos em áreas urbanas durante a pandemia, assim como a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que determinou o adiamento da suspensão dos despejos para março de 2022 tanto em áreas urbanas quanto rurais.

Essas duas medidas têm configurado um arcabouço fundamental de proteção à vida na Região Metropolitana de São Paulo durante a pandemia. No último trimestre de 2021, o Observatório de Remoções registrou que ao menos 1.071 famílias tiveram suas moradias preservadas – e consequentemente sua saúde, dado o recente agravamento da pandemia e de outras epidemias no Brasil. A intensa mobilização da Campanha Despejo Zero já resultou, em escala nacional, em mais de 11.280 famílias poupadas da rua até outubro de 2021.

No entanto, apesar das normas e suspensões, há uma flagrante persistência do estado de emergência habitacional na cidade, com acirramento de conflitos fundiários, marcados pela busca de brechas à aplicação das medidas de proteção à moradia pelos agentes promotores das remoções. Por vezes, por meio de disputas na justiça, mas também – e o que é mais grave -, fora dela, com atuação ostensiva e contrária à lei.

Nesse sentido, as remoções motivadas por situações de risco foram mobilizadas para execução de ações arbitrárias e extrajudiciais, portanto sujeitas a menor controle, como ocorre em especial com as ações movidas pelas subprefeituras. Houve casos de interdição e aplicação de multas a moradores de regiões consideradas em risco, penalizando-os pela situação de sobrevivência imposta pela crise habitacional. Ainda, a justificativa do risco foi mobilizada para a maior remoção registrada no trimestre: 240 famílias removidas da ocupação Nova Conquista, instalada desde maio de 2021 em uma área que pertence em parte à Prefeitura de São Paulo e a uma empresa de investimentos imobiliários, na Zona Sul da cidade.  A exemplo de muitas outras, a remoção ocorreu sem atendimento da secretaria de habitação, das subprefeituras e do conselho tutelar, sob força policial apoiada por representantes dos proprietários, ao contrário do que determinava o mandado de reintegração de posse. Sem oferta de atendimento habitacional definitivo ou provisório, somado com a falta de alternativas de moradia, uma parcela das famílias fundou a Nova Conquista II, em região próxima, enquanto outras tantas podem ter se agregado às estatísticas da população em situação de rua.

Favela do Carrefour, Cambuci (zona Leste), após o incêndio no dia 21 de outubro, que deixou a comunidade em situação de extrema precariedade. Foto: Benedito Barbosa

Ao cenário de emergência, se somam os incêndios – 3 no total, envolvendo destruição de casas e perda da moradia de cerca de 94 famílias. Ao lado das remoções por risco, alertam para a precarização das condições de moradia durante a pandemia.

Diversas ameaças de remoção persistem, afetando ao menos 3.866 famílias no período analisado, enquanto novas ocupações se formam: dentre as 30 ocupações ameaçadas de remoção, 5 delas são recentes, formadas em 2021. Contudo, assentamentos mais antigos, datados da década de 1970, 1980 e 1990 também foram alvo de ameaças.

Ainda que as leis de suspensão de despejos sejam necessárias e decisivas para a proteção da vida durante a pandemia, elas não são suficientes, seja por preverem exceções, como marcos temporais, seja por possuírem prazo de validade estabelecido. Ou seja: trata-se apenas de um adiamento dos conflitos, e não de uma resolução que garanta o direito à moradia em definitivo. Ademais, as leis aprovadas não alcançam a discussão original sobre os conflitos e injustiças que levam à grande parte dos despejos. Já sob efeito dessas medidas, a população em situação de rua registrou drástico aumento. Com o eventual fim das medidas de suspensão, qual será o plano para que o destino das milhares de famílias atualmente ameaçadas não seja a rua?

*Pesquisadoras/es do Observatório de Remoções