Foto: Janela do Acervo Bajubá. Localizado no Centro Cultural Galpão Casa 1, o acervo é voltado para preservação, salvaguarda e estudos da arte, memória e cultura LGBTI+ brasileiras (por Artur Duarte, 2020).

Por Artur Duarte*

Ontem celebramos o Dia do orgulho LGBTIA+ e é notório, a cada ano, o aumento de organizações da sociedade civil e empresas que pautam o tema ou realizam ações. Para nós, população LGBTI+, ter orgulho é resistência, bem como um exercício de todos os dias tentar nos livrar das amarras socialmente impostas desde a infância que muitas vezes nos impedem de viver plenamente. É também reconhecer os aspectos interseccionais que colocam grande parte dessa população em situações mais vulneráveis: uma vulnerabilização induzida que busca sempre parecer inerente àqueles grupos sociais.

Ser LGBTIA+ é ter necessidades como qualquer outra pessoa. Precisamos de moradia, de educação, de emprego, de acesso à saúde, a direitos, a serviços públicos. Mas a tal vulnerabilização que nos é imposta dificulta e impossibilita o real acesso para muitos de nós. A LGBTIfobia cerceia, em diferentes graus, nosso direito à cidade, e o faz em diversas camadas: sociais, culturais, educacionais e institucionais.

Por um lado, tivemos avanços na luta pela garantia de direitos à população LGBTIA+, como a retirada das identidades trans e travestis da lista de doenças ou distúrbios mentais na OMS em 2018, a ampliação das discussões sobre a invisibilidade bi, diversos decretos locais e decisões do Supremo Tribunal Federal. Desde 2018 é possível a alteração do registro civil de pessoas trans e travestis. Em 2019, o STF aprovou a polêmica criminalização da LGBTfobia, o que abriu possibilidades importantes, se considerada a inércia do Legislativo brasileiro em aprovar leis de proteção aos LGBTI+, e o contexto recente de retrocessos em todos os níveis de poderes executivos. No entanto, é necessário repensar as políticas punitivistas e de encarceramento que são usadas como ferramentas de manutenção do sistema cisgênero, classista e estruturalmente racista.  

Mesmo com a existência de decretos e leis, na prática, o acesso a serviços por pessoas LGBTI+ ainda é dificultado e mesmo negado, sobretudo das pessoas intersexo ou cujas identidades de gênero não correspondem à heterocisnorma. Assim, a população LGBTIA+ confronta, se articula, resiste e se apropria de espaços nas cidades, de modo a superar essas barreiras ao pleno exercício e garantia de seus direitos. 

Ela mostra que não é obrigada a existir apenas nos guetos e nos espaços de sociabilidade da noite, embora sejam importantes lugares históricos da existência e do fortalecimento do movimento LGBTI+. Está em toda parte e não luta apenas pelas pessoas desse movimento. Os LGBTIA+ estão na luta por moradia, por espaços de acolhimento, por visibilidade no mercado, por maior acessibilidade para pessoas com deficiências, na luta contra o sexismo e o racismo.

Nesse contexto social, ser arquiteto e urbanista parece frustrante. Os problemas são muito mais complexos que um projeto de equipamento social urbano e é preciso uma rede de proteção ao sistema especulativo que rege as cidades. Porém, isso torna nossa presença, resistências e micropolíticas ainda mais valiosas. Ser pesquisador, arquiteto e LGBTIA+ é ter certeza que estou em uma situação privilegiada e preciso me utilizar disso para ampliar o direito à cidade a todas as pessoas e suas individualidades. Se um projeto pode colaborar para ampliar o direito à cidade a uma pessoa em vulnerabilização, ele precisa ser considerado e incorporado.

O momento é de desmonte das políticas públicas e dos direitos. E, como já estão acostumados, os LGBTIA+ resistem, se articulam, criam instituições para o amplo acolhimento. Nos últimos anos, há notícias de movimentos de moradia LGBTIA+, casas de acolhida, projetos de saúde mental, assessoria jurídica, empregabilidade, dentre outros. Esses espaços se articulam em redes, prestam serviços essenciais e lutam pelo direito ao atendimento humanizado das pessoas que os procuram em equipamentos públicos como unidades de saúde, cartórios e delegacias. 

Rede de Casas de Acolhimento LGBTQIA+, um de muitos exemplos da articulação por direitos.
Fonte: Casa 1 (https://www.facebook.com/casaum/posts/2491139644471063)

Há muitos críticos aos modelos de atuação da sociedade civil que os consideram uma validação de políticas neoliberais do cenário de retração do Estado. Porém, o que estão fazendo é resistência combinada à denúncia a/do Estado, propositalmente inerte. É um chamado à política pública: “Nós, com recursos escassos, estamos fazendo com qualidade seu trabalho e mostrando novas soluções. Que horas você vai assumir?” 

*Artur Duarte é arquiteto e urbanista, mestre pela FAU-USP, pesquisador na temática de moradia e acolhimento para a população LGBTIA+, colaborador no Fundo FICA.