Foto:Mário Vasconcellos/CMRJ

Por Raquel Rolnik*

A chamada guerra às drogas e ao crime organizado na verdade tem um alvo: a população negra e pobre residente nas favelas. Enquanto isso, as milícias deixam de ser combatidas pela polícia porque são a polícia, e deixam de ser combatidas pelos políticos, porque são os políticos.

O assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes no Rio de Janeiro completa um ano nesta quinta-feira, 14 de março, e as últimas investigações apontam para ex-policiais envolvidos com as milícias no Rio de Janeiro. Mas o que são as milícias? Milícias são grupos paramilitares que ocupam favelas e bairros populares, constituindo um verdadeiro regime privado e armado de controle territorial.

Os primeiros grupos de que se tem notícia surgiram no final dos anos 1990 no Rio de Janeiro, a princípio com a justificativa de oferecer segurança em áreas envolvidas em disputas de grupos rivais pelo tráfico de drogas, ou em conflitos com a polícia. Ou seja, com a justificativa de manutenção da ordem e proteção dos moradores desarmados, e funcionando portanto como uma espécie de segurança privada paga, como as que neste mesmo período foram ganhando cada vez mais mercados nas cidades. Logo, este negócio da proteção, formado majoritariamente por policiais e ex policiais, passou a incluir também outras atividades: a exploração do transporte local através de vans, serviços de  fornecimento de gás e água, e redes próprias de tevê a cabo e internet. Ou seja: por meio de uma ação armada e violenta, as milícias capturaram para si parte importante do mercado de serviços nestes bairros.

Caso se confirme o envolvimento de milicianos no assassinato de Marielle, qual seria seu interesse em silenciá-la? Em 2008, quando era assessora do então deputado estadual Marcelo Freixo, este presidiu uma CPI das Milícias, quando foram identificados 170 bairros controlados por elas. Naquela ocasião, além de denunciar as formas de extorsão e exploração perpetradas sobre os moradores, a investigação apontou para a estreita relação entre os milicianos com a política partidária, demonstrando que além da exploração do mercado da segurança e dos serviços, estes grupos também haviam entrado no negócio da política, no mercado dos votos.

Na época a CPI gerou algumas prisões e constituiu grupos especiais de investigação como o GAECO (Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado) do Ministério Público do Rio de Janeiro, um dos responsáveis em conjunto com a Polícia Civil, pelas recentes prisões dos suspeitos dos assassinatos de Marielle e Anderson.

Neste mesmo ano, 2008, o Rio de Janeiro lançou uma política intensa de  “guerra às drogas” e “combate ao crime organizando” através das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) que, a pretexto de acabar com a violência na cidade, ocuparam desde aquela data 38  comunidades da cidade. Para além de uma geografia seletiva, já que a imensa maioria destes territórios estão situados na zona sul, em torno de bairros de maior renda e nos então cenários dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo, apenas um era dominado por milícias, e não por grupos de traficantes.<

Marielle, negra, favelada, moradora da Maré, também denunciaria  (inclusive em sua dissertação de mestrado UPP: a redução da favela a três letras, uma análise da segurança pública do Estado de Rio de Janeiro, publicada pela n-1 edições) o quanto as UPPs reproduziam a forma histórica discriminatória de tratamento dos moradores das favelas, com violações sistemáticas de direitos, homicídios e desaparecidos, em sua maioria de negros.

Nas favelas da zona oeste, as mais precárias e violentas, as milícias correram soltas, de forma que, se em 2008 eram 170 os bairros controlados por estas, hoje já são 202. Não é por acaso: estes grupos não são combatidos pela polícia por que são a polícia. Não são combatidos pelos políticos porque são os políticos. E finalmente não são combatidos pelo discurso da informalidade/ilegalidade, por que seu fundamento é justamente a manutenção e expansão do mercado.

Não sabemos até agora nem que foram os mandantes, nem quais foram as motivações destes assassinatos. Mas não temos dúvida de que uma voz que se levanta para defender o empoderamento dos corpos discriminados e massacrados, para denunciar ações abusivas do próprio Estado e acenar com a esperança de uma transformação, e o faz não através de outro, mas de si mesma. Esta voz que é um obstáculo para a expansão destes regimes privados e securitários que têm capturado nossas cidades.

* Professora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade. Texto publicado originalmente no UOL.