Por Vicente Sisla Zeron e Marina Harkot *

Para quem vive em São Paulo, não é novidade que o sistema de mobilidade urbana da cidade tem se modificado consideravelmente na última década. Se até então havia uma hegemonia de investimentos públicos associados ao automóvel, nos últimos anos a cidade passou por um processo intenso de implantação de infraestrutura cicloviária que, pela primeira vez, colocou em disputa o espaço reservado ao automóvel. Nesse debate, destacam-se as condições históricas em que essa implantação foi realizada – fruto de um planejamento que remonta aos anos 1980 e de uma pressão exercida por ativistas desde a pós-redemocratização – e também os embates negativos recentes entre comerciantes e moradores dos terrenos localizados nas vias onde as infraestruturas para bicicleta foram implantadas.

As transformações pela qual a cidade tem passado significam maior acessibilidade sobretudo às populações de baixa renda, uma vez que a bicicleta é um dos meios de transporte que representa menor custo ao usuário – e é entre as famílias com renda mensal de até quatro salários mínimos que estão concentradas quase 70% das viagens totais em bicicleta, segundo a Pesquisa Origem e Destino 2017. A infraestrutura de circulação cicloviária, no entanto, fica comprometida se, paralelamente a ela, não existirem equipamentos para guarda de bicicletas que garantam facilidade e segurança para estacionar, além da importante integração com os sistemas de transporte de maior capacidade – metrô, trem e corredores de ônibus.

Previstos em lei desde 2005, mas implementados depois…

Ao final de 2014, em paralelo à intensificação da implantação de infraestrutura cicloviária pela gestão Haddad, a Secretaria Municipal de Transportes começou a adaptar os terminais de ônibus para o estacionamento de bicicletas através da instalação de paraciclos ou bicicletários. A existência de bicicletários em terminais e estações de transporte coletivo está prevista desde 2007 (Lei nº 14.226/07, art. 8º) e, em locais de grande afluxo de público, desde 2005 (Lei municipal nº 13.995/05). São poucos, no entanto, os municípios brasileiros que elaboraram uma política de estacionamento de bicicletas que procure atender a todo o seu território. A ausência de políticas públicas de incentivo à mobilidade cicloviária – e portanto de incentivo à construção de novos bicicletários – é exemplar da falta de equipamentos de guarda que atendam às necessidades da população.

Nas gestões municipais mais recentes, o Metrô tem desativado bicicletários e substituído os equipamentos por paraciclos sob a justificativa de que não há demanda suficiente que justifique os custos de manutenção desses equipamentos. Em contraposição, a CPTM divulgou recentemente que o número de embarques de bicicletas em suas composições quase triplicou na última década: foram de 13,2 mil ciclistas no período entre janeiro e julho de 2009 para 57 mil entre os mesmos meses em 2019. Ressalta-se que os embarques de ciclistas no Metrô e na CPTM têm horários restritos: são permitidos apenas após as 20h30 nos dias úteis, após às 14h aos sábados, e o dia inteiro aos domingos – limitados ainda, em todos os casos, a quatro bicicletas apenas no último vagão, desde que não prejudiquem o conforto de outros passageiros. Os números obtidos, portanto, poderiam ser muito maiores se a política de embarque de bicicletas nos trens do Metrô e da CPTM fosse mais flexível e, principalmente, se a oferta de bicicletários na cidade, como apresentada no mapa interativo a seguir, fosse maior.

Onde há estação/terminal, tem bicicletário

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Neste mapa, fica evidente a dependência dos investimentos públicos em mobilidade cicloviária dos investimentos em outros meios de transporte. Isso indica que não se investe na construção de bicicletários em espaços que não sejam estações de metrô, trem ou terminais de ônibus, onde já existe uma demanda “garantida” associada ao compartilhamento de viagem com esses meios de transporte. São poucos os casos em que bicicletários foram construídos justificados pela demanda criada pelo próprio equipamento, caso dos bicicletários do Largo da Batata, Praça dos Arcos e Paraíso que não estão associados a nenhuma estação de transporte e são uma iniciativa por meio de um termo de cooperação entre o Banco Itaú e a Prefeitura de São Paulo.

Essa lógica de investimento em bicicletários que criariam sua própria demanda encontraria respaldo em várias partes da cidade onde já se nota que existe demanda. Tanto no Centro, onde o número de ciclistas vem crescendo (como aponta a Pesquisa OD 2017) e há uma uma baixa oferta de bicicletários, acompanhada de frequentes relatos de furtos de bicicleta nos paraciclos nas ruas; quanto em algumas áreas periféricas planas, onde os poucos bicicletários que existem muitas vezes ficam lotados todos os dias desde cedo, como é o caso no Jardim Helena e em Suzano. A construção de novos equipamentos poderia potencializar a utilização da bicicleta , uma forma acessível e barata de se locomover pela cidade que poderia contribuir para desafogar o já esgotado sistema de transporte público que leva a população no trajeto pendular diário periferia – centro. Teria impacto direto, também, sobre os chamados deslocamentos “da última milha”, conectando a moradia ao transporte de média e alta capacidade – ou ainda, a estação de transporte ao local de trabalho ou estudo.

Onde tem vaga?

Os bicicletários correspondentes aos símbolos azuis no mapa foram identificados a partir do site do CEM (Centro de Estudos da Metrópole), que contém os dados georreferenciados de 84 bicicletários públicos do município de São Paulo, informando para cada um o tipo de equipamento (paraciclo ou bicicletário), a quantidade de vagas e o órgão responsável pela sua administração. Esta é a única base de dados completa acessível ao público. Ainda assim, não inclui equipamentos importantes, deixando de fora todos os que estão situados fora das fronteiras do município, incluindo o bicicletário da estação Mauá da CPTM – o maior bicicletário da América Latina, com 1.968 vagas. Além disso, seus dados estão desatualizados: a última contagem data de de junho de 2017, e por isso, diversos equipamentos novos que foram inaugurados depois dessa data, como é o caso de vários bicicletários nas estações novas da Linha 5 do metrô, não haviam sido incluídos também.

Por conta disso, para a produção deste mapa foi realizada uma atualização dos dados, agregando bicicletários de estações novas da ViaQuatro, ViaMobilidade, CPTM, Askobike, Parada Vital e um novo bicicletário do Itaú. Com isso, a contagem de bicicletários da cidade aumentou de 84 para 115, totalizando 12.465 vagas ofertadas pela cidade. Destas, mais da metade (6.259) são oferecidas pela CPTM, 2.377 estão nos terminais de ônibus da EMTU e SPTrans, e 1.313 ao longo da rede de metrô. Dessas últimas, no entanto, apenas 210 são da própria companhia do Metrô. Outras 439 são da ViaQuatro, responsável pela linha 4 amarela, e as demais 664 são da ViaMobilidade, responsável pela Linha 5 Lilás.

Número total excluindo os bicicletários de Mauá e Santo André, que são geridos por iniciativas particulares, e que juntos possuem mais 2.302 vagas.

A atualização manual dos dados, no entanto, é dificultada pela deficiência de divulgação de informações sobre bicicletários pelas companhias que os disponibilizam. É o caso, por exemplo, do Metrô, sobre o qual sabe-se que alguns bicicletários foram desativados ou trocados por paraciclos com vagas muito limitadas. No entanto, como não há nenhuma plataforma oficial que forneça informações sobre quais são os bicicletários existentes administrados pela companhia, não se sabe quais são os que deixaram de existir e se novos equipamentos foram construídos. Foi encontrada dificuldade na obtenção de informações também sobre os bicicletários ofertados pela EMTU e da SPTrans.

Os círculos em vermelho no mapa mostram mostra os dados de uma plataforma colaborativa on-line, onde os ciclistas podem indicar os bicicletários e paraciclos que conhecem, sejam eles públicos ou privados. Neles, pode-se observar uma concentração de paraciclos e bicicletários ainda muito associada à rede de transporte público de alta e média capacidade – uma vez que esses dados muitas vezes coincidem com os dados do CEM, já que na plataforma colaborativa de onde foi retirado os dados do CEM não são apresentados – principalmente concentrada na Região Central e no Quadrante Sudoeste da cidade. Esta concentração pode ser explicada através de duas hipóteses não mutuamente excludentes: a primeira é de que essa plataforma colaborativa tem um alcance limitado a usuários que frequentam e circulam essa região da cidade, e portanto, os bicicletários que indicam na plataforma ficam restritos às áreas que estas pessoas frequentam. Isso se dá por uma questão de limitação própria de plataformas de divulgação online, onde existe, em muitos casos, uma tendência de que a circulação fique restrita a círculos sociais próximos à pessoa que originalmente a divulgou. A segunda é de que realmente existe uma concentração maior de bicicletários, públicos e privados, na Região Central e Sudoeste da cidade.  Isso pode ser reflexo, também, da apropriação do conceito da bicicleta como meio de transporte ecológico, sustentável e saudável pelo mercado imobiliário, que faz seus lançamentos nesta região, justamente a mais rica da cidade, aproveitando-se desse conceito para lançar imóveis atrativos ao público eco-friendly.

De toda forma, a falta de um administrador dessa plataforma colaborativa que averigue e aprove as contribuições realizadas faz com que muitos de seus dados estejam incorretos – uma vez que a inserção de dados pelos usuários é livre – e desatualizados, já que, quando um equipamento é modificado ou fechado, não é certo que a comunicação da alteração chegará à plataforma de dados. Em função disso, nessa base de dados também foi feita uma atualização, excluindo dados sobre os quais se dispunha de informações que permitiam concluir que estavam incorretos, e classificando os demais entre “corretos” e “necessita verificação”. No entanto, uma divulgação mais abrangente da plataforma e a possibilidade de maior envolvimento dos usuários na verificação e atualização das informações poderia fazer com que a riqueza de dados coletados fosse ainda mais abrangente, de forma a cobrir toda a cidade.

Ainda assim, a plataforma colaborativa apresentada, em conjunto com a base de dados fornecida pelo CEM, tem o potencial de originar uma nova plataforma com dados mais precisos, atualizados e abrangentes, uma vez que há uma falta de esforço por parte da CET e do poder público de juntar e disponibilizar um mapeamento dos bicicletários paulistanos.

Tal mapeamento poderia ser de grande utilidade para os ciclistas paulistanos, que poderiam se informar sobre onde encontrará locais apropriados para guardar a bicicleta perto de seu destino – contando com itens como quantidade de vagas, necessidade ou não de cadastro, como é o controle de entrada e saída e, principalmente, horário de funcionamento. Essa, portanto, poderia ser uma forma de  incentivar o uso da bicicleta e contribuir para a melhora da mobilidade urbana da cidade através de um meio de transporte flexível e acessível para a população.

*Graduando em Arquitetura e Urbanismo na FAU-USP e bolsista de Iniciação Científica; doutoranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade.