* Por Raquel Rolnik

A existência de um quilombo urbano na cidade de São Paulo, na região do Saracura – onde hoje temos a Avenida 9 de Julho –, no bairro do Bexiga, zona central, começa a se concretizar muito mais com os recentes achados arqueológicos encontrados, em 30 de março, durante o processo de escavação da Linha-6 Laranja do Metrô de São Paulo.

Desde que as obras da futura estação foram iniciadas, os moradores do Bexiga e do movimento negro de São Paulo têm se mobilizado pela preservação da região que nasce com um quilombo e, até hoje, permanece como um dos principais territórios negros da cidade.

A pressão social colocou em questionamento o processo de licenciamento da obra, aprovado sem que a etapa de escavação arqueológica do sítio já tivesse sido feita, analisada e, portanto, sem que os efeitos e impactos da obra tenham considerado esta história e permanência. A luta da sociedade civil foi fundamental também para que, em fevereiro, após um período de fortes chuvas e enchentes, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) recomendasse a suspensão dos trabalhos arqueológicos no local, realizados pela empresa A Lasca, diante dos perigos de perda irreparável dos materiais históricos.

Contratada pelo consórcio Linha Uni, liderado pela Acciona, – a empresa concessionária da obra do metrô –, as construções foram paralisadas parcialmente pela companhia que seguiu, entretanto, nos últimos meses, instalando lamelas para contenção e realocação das tubulações de água e esgoto, justificadas pela necessidade de segurança.

Foi justamente durante esses trabalhos que novos vestígios foram encontrados nas imediações da Rua Cardeal Leme. Tudo indica serem artefatos utilizados em cerimônias e atividades de religiões de matriz africana, datados do século 19. Mais evidências que podem realmente constatar a presença do quilombo no lugar.

O Ministério Público Federal (MPF) marcou para esta sexta-feira (19) uma vistoria no Sítio Arqueológico Saracura. A visita foi agendada para examinar as condições presentes de escavação, por conta do pedido da empresa de arqueologia e do próprio Metrô de retomar as obras.

Diante das evidências da existência – e permanência – deste quilombo, e considerando que não se trata simplesmente de fazer um relatório arqueológico como parte dos processos obrigatórios para grandes obras, mas colocar questões muito mais amplas relacionadas aos instrumentos de reconhecimento de quilombos, a Superintendência do Iphan de São Paulo decidiu nacionalizar o caso, encaminhando-o aos ministérios da Cultura, Igualdade Racial, Direitos Humanos e Cidadania, e também para a Fundação Palmares, – órgão do governo federal responsável pelo processo certificação dos quilombos –, para que se posicionem institucionalmente diante das novas evidências.

Agora, não se trata mais de simplesmente um rito burocrático necessário, administrativo, para poder liberar uma obra. Mas sim de reconhecer a existência de um sítio arqueológico, de um quilombo e, sobretudo, de reconhecer a persistência desse território negro na cidade de São Paulo, com todos os desafios que isso representa para que o tema racial seja incorporado nas estratégias de política urbana, o que jamais aconteceu na história do urbanismo e da regulação urbanística da cidade.

Ouça a íntegra do meu comentário no site do Jornal da USP.

*Raquel Rolnik é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do LabCidade.