Sepultamento das 19 vítimas do massacre de Eldorado (1996). Foto: João Roberto Ripper

Por Aluízio Marino e Bianca Tavolari *

“Na Palestina verde enxadas lutam contra armas”. O retrato do Brasil profundo como uma “Palestina verde” –  presente na música “Verbos à flor da pele”, composta por Marcelo Yuka em 2005 –  não é um exagero. Esta imagem ilustra o histórico de violências e conflitos no campo. A luta pela democratização da terra é marcada por massacres. O mais conhecido deles é o de Eldorado dos Carajás, de 17 de abril de 1996, quando 19 trabalhadores rurais sem terra foram mortos pela polícia militar do estado do Pará. Ao contrário do que muitos podem imaginar, não se trata de um passado de barbárie que ficou para trás. A violência no campo persiste e ganha força: apenas nos quatro primeiros meses de 2019 foram registrados dez assassinatos em conflitos no campo.

O atual governo federal tem atuado de maneira a legitimar esta violência a partir de reiteradas tentativas de instituir excludentes de ilicitude para as ações violentas de agentes da segurança pública. “Excludente de ilicitude” nada mais é do que uma escolha de política criminal em que uma conduta ilícita, do ponto de vista penal, deixa de ser punida. O Código Penal já prevê alguns deles, como, por exemplo, a legítima defesa. O ato cometido não deixa de ser ilegal, apenas deixa de ser punido pelo direito penal. Estamos falando, portanto, de exceções às regras penais. E, por isso, devem ser bem fundamentadas e ter critérios de justificação claros.

A primeira proposta foi incorporada ao chamado “pacote anticrime”, de autoria do Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro. Um de seus componentes mais polêmicos era o excludente de ilicitude para agentes de segurança que cometessem excessos decorrentes de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O grupo de trabalho da  Câmara que analisa o pacote rejeitou este ponto por duas vezes. Diante da reprovação da Câmara, no dia 21 de novembro, o governo federal então apresentou ao Congresso um novo projeto de lei, n. 6.125/2019, que visa recriar o excludente de ilicitude para isentar de pena agentes de segurança que matam em serviço.  Por mais que o Código Penal brasileiro já preveja a aplicação desse instrumento para as forças militares e policiais no estrito cumprimento do dever legal, o novo projeto procura ampliar as possibilidades de aplicação, prevendo que o excludente de ilicitude seja utilizado em ações de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO).

Operações da GLO também são excepcionais. O recurso às forças armadas é apenas de iniciativa do Presidente da República e o instrumento só pode ser utilizado quando todas as forças tradicionais de segurança foram esgotadas, já que decretar Garantia de Lei e Ordem significa, na prática, conferir para os militares o poder de polícia. Este recurso já foi utilizado em grandes eventos – como Copa e Olimpíadas ou mesmo na visita do papa Francisco –, mas também para reprimir manifestações e protestos.

O Ministério Público Federal emitiu uma nota técnica afirmando que o projeto é flagrantemente inconstitucional e “sem paralelo, até mesmo se comparado aos atos institucionais da ditadura militar. Nele há uma autorização implícita, mas efetiva, para que as forças de repressão possam, sob o manto de uma operação de GLO, fazer uso abusivo e arbitrário da violência, com grave risco de adoção de medidas típicas de um regime de exceção, incompatíveis com os padrões democráticos brasileiros e do direito internacional.”

Nesta semana, o presidente anunciou que pretende enviar um novo projeto de lei ao Congresso, unindo o excludente de ilicitude e as operações de Garantia da Lei e da Ordem para um propósito específico: permitir ações militares de exceção em casos de reintegração de posse no campo. Batizado como “GLO Rural”, o projeto possibilita o uso deste mecanismo para executar reintegrações de posse no campo, após decisão da Justiça pela retomada da propriedade. O argumento apresentado por aqueles que a defendem é que existe uma lentidão dos governos estaduais no cumprimento dessas decisões judiciais. Não há dados concretos para embasar a justificativa: quantos são os casos em que há decisão judicial pela reintegração, mas que a remoção ainda não ocorreu? Quais são as razões – jurídicas e políticas – para estas remoções não terem acontecido? Qual é o tamanho e a extensão do problema – se é que é um problema?

A proposta faz com que a GLO, que deveria ser utilizada somente em situações graves de perturbação da ordem em que há esgotamento das forças tradicionais de segurança, ganhe um status de normalidade. Há uma clara recusa da intermediação institucional. O emprego das forças armadas como regra pretende que a violência seja a primeira e única resposta para estes conflitos. O excludente de ilicitude pretende que a violência não só seja a regra, mas que tampouco seja punida.

Esta proposta confronta diretamente com as recomendações da ONU sobre remoções forçadas, que preveem a proteção das pessoas, mesmo daquelas que não possuem título ou documento formal de sua casa ou terra. Em outras palavras, a GLO Rural dará carta branca para remoções violentas no campo e pretende constituir um campo em que os direitos humanos não são válidos.

Mesmo que a medida não seja aprovada, sua simples proposição já reforça a narrativa de criminalização dos movimentos sociais. Uma estratégia perversa que coloca a luta pela democratização da terra como um mal a ser combatido.

O Movimento Sem Terra (MST) reagiu imediatamente ao anúncio do presidente Bolsonaro, afirmando se tratar de uma “licença para matar a luta social”.

A proposta parece ignorar a persistente violência no campo. Dados do último relatório da Comissão Pastoral da Terra apontam que em 2018 mais de duas mil famílias foram despejadas de forma ilegal, um aumento de 59% com relação a 2017. Ainda segundo o documento, em grande parte esses despejos acontecem em terras griladas onde o suposto proprietário remove as famílias utilizando a violência, apoiado por grupos armados, que muitas vezes são respaldados pelas forças policiais.

Em Fórum de Lideranças, Yanomami e Ye’kwana denunciam a invasão de seu território por 20 mil garimpeiros. Fonte: Victor Moriyama/ISA

Verifica-se um alinhamento das forças de segurança pública com grupos armados, o que intensifica a violência como “solução” dos conflitos fundiários. Ao invés de mediar esses conflitos pré-existentes, a GLO Rural tem o potencial de incentivar a ação de grileiros, madeireiros, garimpeiros e outros grupos armados que se impõe pela violência. E, mais do que isso, corroem a democracia por dentro.

* Doutorando na UFABC, pesquisador do LabCidade; professora do Insper e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.