Foto: Renato Abramowicz Santos

Renato Abramowicz Santos, Débora Ungaretti e Raquel Rolnik*

Neste mês de agosto, famílias que foram removidas dos dois quarteirões do  bairro do Campos Elíseos (conhecidos como quadras 37 e 38), estão sendo chamadas a se apresentar à PPP Habitacional – parceria entre a prefeitura e a “Canopus – PPP Habitacional SP Lote 1 S/A”, empresa que ganhou a concessão para executar e gerenciar a produção das moradias no local.

O que poderia parecer uma boa notícia, está gerando angústia e apreensão entre os/as moradores, já que depois de anos de espera e falta de informações estão sendo convocadas a entregar em dez dias uma lista enorme de documentos de forma digitalizada que inclui, entre outros, imposto de renda, carteira de trabalho, comprovante de pagamento do INSS, licença para exercício da profissão… Ora, a  situação socioeconômica da maioria das pessoas que morava e trabalhava na região é de grande informalidade: muitos não têm documentos em dia, holerites, os comprovantes exigidos, conta em banco. Muitos não têm renda fixa, emprego estável, crédito no celular ou conhecimento para acessar, realizar a digitalização e enviar toda a documentação; há intermitência nos rendimentos e de trabalho; tudo isso impacta as condições de conseguirem atender a documentação solicitada e se enquadrar nas exigências do financiamento. Mas nada disso é novidade: toda essa situação é apontada e questionada como ser solucionada por parte das entidades da sociedade civil insistentemente ao longo dos últimos anos.

Em 2018, um quarteirão inteiro foi demolido (conhecido como quadra 36) para a construção do Hospital Pérola Byington, realizado por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP), capitaneada pela Secretaria de Saúde do governo do Estado de São Paulo. Naquele momento, dois quarteirões vizinhos (quadras 37 e 38) também estavam ameaçados pela intervenção de outra PPP, desta vez, sob responsabilidade conjunta das Secretarias de Habitação do governo do Estado, da prefeitura de São Paulo e da COHAB. Por esses três quarteirões serem demarcados pelo Plano Diretor municipal como ZEIS (Zona Especiais de Interesse Social), o governo foi obrigado – por pressão de moradores, comerciantes, entidades e ONGs, advogados/as populares, movimentos de moradia e por ação do Ministério Público e da Defensoria Pública – a constituir Conselhos Gestores como forma de (tentar) garantir acompanhamento, participação social e os direitos das famílias ameaçadas e removidas durante as intervenções.

A última vez que a prefeitura de São Paulo convocou uma reunião do Conselho Gestor das quadras 37 e 38, no entanto, foi em julho de 2020 – ou seja, há mais de dois anos. Naquele dia, como sempre foi desde o início das reuniões do Conselho, a prefeitura não explicou claramente de que forma as pessoas ameaçadas dos dois quarteirões seriam atendidas definitivamente, apesar deste ser um dos direitos vinculados às pessoas que moram em uma ZEIS. Foram inúmeras as vezes em que parte das/os conselheiras/os enviaram perguntas e solicitaram por mais informações a esse respeito, feitas formalmente, em ofícios, em reuniões do Conselho Gestor, em solicitações via Ministério Público… nunca atendidas e respondidas claramente  por parte da prefeitura que coordenava o Conselho Gestor.

A remoção das pessoas moradoras e comerciantes dos dois quarteirões alvos da PPP Habitacional se deu efetiva e concretamente durante a pandemia, iniciada em um momento em que ainda não havia vacina e que ficar em sua casa era o meio mais seguro de proteção ao vírus. Em dezembro de 2021, os dois quarteirões estavam praticamente vazios de seus antigos moradores e comerciantes. As pessoas que conseguiram ser cadastradas em 2017 pela prefeitura passaram a receber o Auxílio Aluguel de 400 reais mensais fazendo com que muitas tivessem que se mudar do centro da cidade por não ter mais condições de se manter morando ali ou, ainda, tivessem que se mudar para espaços em condições (ainda mais) precárias. Fora aquelas pessoas que foram removidas sem receber nenhuma forma de atendimento ou auxílio por não estarem cadastradas.

Neste mês de agosto de 2022, algumas pessoas cadastradas em 2017 foram contatadas pela concessionária responsável pela implantação da PPP Habitacional para dar início aos procedimentos de análise para o atendimento definitivo, que consiste na venda com financiamento subsidiado de apartamentos em empreendimentos habitacionais de interesse social que estão sendo construídos em um dos dois quarteirões alvo da intervenção (na quadra 38), esvaziado e demolido quase inteiro em 2021.

A notícia, no entanto, não é boa: grande parte das pessoas corre o risco de ficar de fora do atendimento, seja por conta da estrutura excludente da própria modelagem da PPP Habitacional, seja pela forma como o processo de atendimento das famílias está sendo conduzido – com ausência de diálogo e desrespeito às pessoas que têm o direito de ser atendidas.

Um primeiro problema é que o contato da concessionária está se dando sem qualquer mediação por parte da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) ou do serviço social da prefeitura, e, ainda, sem passar pelo Conselho Gestor de ZEIS constituído. Quando as pessoas respondem a solicitação de contato da PPP Habitacional, mais uma surpresa: são informadas que têm apenas dez dias para enviar uma série de documentos que serão submetidos à análise para o financiamento. Ou seja, depois de cinco anos de suspense, incertezas e dúvidas em torno de como seria o atendimento definitivo dessas pessoas, elas têm dez dias para enviar o que lhes é exigido para tentar a sorte, sem saber ao certo o que estão arriscando, quais suas reais chances de serem aprovadas e – fundamental saber –  o que acontecerá com quem não for selecionado pelo processo de análise para o financiamento.

Lista de documentos exigidos dos/as moradores pela PPP Habitacional

Não só o prazo dado é curto, como também os atendimentos oferecidos pela PPP não são presenciais e a orientação é de que, preferencialmente, as pessoas enviem os documentos não só digitalmente, como em um único arquivo em formato PDF. Tudo isto dificulta tremendamente o acesso, as possibilidades e chances de sucesso nesta loteria.

Aparentemente, esta parece ser a primeira etapa de um processo de análise que conta com diferentes estágios em que, a depender do momento, outros atores, além da concessionária da PPP Habitacional, realizam a avaliação de quem pode e vai ser aprovado. Neste primeiro momento, aparentemente, a PPP faz uma “pesquisa”, uma “atualização de cadastro” das pessoas cadastradas que ela conseguir entrar em contato, exigindo, como já mencionado, uma série de documentos. Além do prazo curto para entrega dos documentos, as pessoas que não estão sendo encontradas por algum problema cadastral também correm o risco de ficar de fora. E não são exceção: segundo informações da concessionária, de um total de 189 pessoas cadastradas, ela conseguiu contatar em torno de 100.

Em um segundo momento, aparentemente, essas informações serão compartilhadas com a Sehab – talvez será aí que verão quem não tem condições cadastrais (documentos, registros, declarações, comprovantes de renda, endereço…) de acessar a PPP. No momento seguinte, aparentemente (o uso recorrente é proposital, pois nada é confirmado e explicado com certeza), a análise será conjunta com a Caixa Econômica Federal – talvez será aí que verão quem tem condições financeiras de acessar a PPP, já que muitas delas não tem como se comprometer com um financiamento a longo prazo de parcelas que até o momento não sabem de quanto vai ser.

Ou seja, as pessoas estão entrando completamente no escuro, sem saber o que vai acontecer, tanto se forem aprovadas, quanto se não forem. É obrigação do poder público esclarecer tudo isso. Independentemente das incertezas e dificuldades, é importante e justo que se afirme que a maioria das pessoas com quem falamos está disposta e animada para acessar e pagar pela moradia definitiva. A questão que fica é se a PPP vai – e pode – realizar esse sonho. Não sabemos se haverá ainda mais alguma etapa.

Junto com a documentação a ser entregue, as pessoas precisam assinar uma declaração de ciência e acordo das condições do atendimento pela PPP Habitacional. No documento, há, por exemplo, menções a um suposto sorteio, que ninguém sabe ao certo quando e para que ele serviria, como se pode ver nos itens que lá constam e que reproduzimos a seguir:

“A participação neste programa habtacional (sic) não garante ao(s) candidato(s) inscrito(s) o direito à aquisição de uma unidade habitacional, ainda que preencha(m) os requisitos previstos no Edital de Convocação do respectivo sorteio”

Ou em outro item, como consta no documento:

“O direito de aquisição da unidade dependerá da disponibilidade de unidades habitacionais e da classificação do candidato no sorteio realizado pelo Poder Concedente”

Ao ler o documento, muitas perguntas surgem e ficam sem resposta: e se a pessoa não tiver condições econômicas de arcar com o financiamento? E se a pessoa durante alguma etapa da análise for desclassificada, o que acontece? E, ainda, se for excluída por conta do sorteio? Nesses casos, a prefeitura vai considerar que realizou o atendimento – isso é, a assinatura do documento e entrada no processo de análise serão contados como atendimento realizado?

Uma dúvida que aflige muitas pessoas das quadras contactadas pela PPP é: e se a pessoa tiver nome sujo? Porque em uma das reuniões realizadas pela Sehab, eles garantiram que nome sujo não seria um problema, disseram que o que não poderia haver era “dívida pública” ou um imóvel no nome. Mas será que a Caixa Econômica Federal tem o mesmo entendimento e acordo? E a PPP? Pois, em um dos itens do mesmo documento se lê:

“Eventuais comprometimentos financeiros pelo(s) candidato(s), tais como: empréstimos, financiamentos, consórcios, utilização de limite de cheque especial, dentre outros, poderão influenciar na liberação do valor de financiamento pela Caixa Econômica Federal, e, consequentemente, poderão acarretar na desclassificação do(s) candidato(s) inscrito(s)”

A informação dada pela PPP é de que, mesmo se a pessoa for desclassificada, ninguém perderá o Auxílio Aluguel “por enquanto”, “neste momento”. Afirma também que essas decisões e o atendimento de quem não for contemplado pela PPP cabe à Sehab. Mas como confiar em informações fornecidas pela concessionária pelo telefone se o histórico de todo esse processo até o momento é de silêncios, confusão e descumprimento dos combinados, compromissos e direitos? Com essas novas movimentações, fica também em aberto até quando as pessoas poderão contar com o atendimento provisório (Auxílio Aluguel) e se vão de fato, como foi prometido, ter o atendimento definitivo.

Coube mais uma vez para as entidades da sociedade civil o papel que deveria ser do serviço social e da Secretária de Habitação da prefeitura: buscar informações e reunir os/as moradores para entender o que está acontecendo e o que pode ser feito. Um desses encontros aconteceu na área em uma noite de agosto na área térrea de um estabelecimento comercial reunindo muitas pessoas. Três viaturas (uma da GCM e duas da polícia) passaram lentamente na frente do local para ver a movimentação e também como forma de intimidação. É assim que são (não é de hoje) as coisas para os/as antigos/as moradores e comerciantes da região que estão há tempos e de forma sistemática sendo ameaçados e expulsos. Por anos sofreram diversas formas de assédio, revistas forçadas, interdições e agressões. As justificativas – que têm respaldo social mais amplo – acabam sendo porque “todos” são “traficantes, bandidos e noias”, como recorrentemente ouvimos nos discursos sobre a realidade do local, que reforçam e constituem a estratégia de criminalização histórica em torno desses territórios populares e suas populações. Em mais um momento de incerteza e aflição em que seus futuros estão em jogo, a dinâmica segue a mesma: os eventos que afetam a vida de quem mora, trabalha e circula na região são sempre acompanhados por violência e silêncio.

* Doutorando na FFLCH-USP e pesquisador do LabCidade; Pesquisadora doutoranda no LabCidade; Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade;