Benedito Roberto Barbosa, Guilherme Lobo Pecoral, Isabella Alho, Julia do Nascimento de Sá, Talita Anzei Gonsales, Ulisses Alves de Castro, Débora Ungaretti, Renato Abramowicz Santos, Fernanda Accioly Moreira, Leonardo Foletto, Aluízio Marino, Raquel Rolnik, Francisco Comaru*

Dois projetos de lei que suspendem despejos e remoções como medidas de prevenção à propagação de COVID-19 foram vetados pelo governador de São Paulo, João Dória, e pelo presidente Bolsonaro. A pandemia ainda não acabou, e é urgente que as assembleias estaduais e congresso federal derrubem os vetos aos dois projetos de lei como forma de reafirmar o pacto pela vida. A atualização de abril a junho de 2021 do mapeamento colaborativo do Observatório de Remoções aponta ao menos nove remoções na Região Metropolitana de São Paulo nesse período, o que envolve mais de 500 famílias que, sem ter onde morar, têm engrossado o enorme número de pessoas morando nas ruas.

O PL estadual 146/2020, aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo, foi vetado pelo Governador João Dória na semana passada, sob a alegação de que a suspensão  das remoções e despejos não seria mais necessária devido ao avanço da vacinação no estado. Os prefeitos de Santo André e Ribeirão Preto também vetaram os PLs municipais que suspendiam remoções. Outros municípios, como Guarulhos, Mogi das Cruzes e Santos, seguem na busca pela aprovação dos “PLs Despejo Zero”. Em Campinas, o projeto foi arquivado por ser considerado inconstitucional. O mais recente foi o veto do Presidente Bolsonaro ao PL 827/2020, que previa, inclusive, um prazo para mediação entre os envolvidos após o término da validade da lei.

Os vários projetos de lei aprovados nas Assembleias Legislativas e Congresso Nacional  representaram uma vitória da Campanha nacional Despejo Zero, apontando uma sensibilidade do Legislativo em torno da necessidade da suspensão de despejos e remoções neste momento, para poder proteger a vida. No âmbito do Judiciário também tiveram repercussão em casos concretos tanto a recomendação do Conselho Nacional de Justiça, de março de 2021, para que os órgãos do Judiciário tivessem especial cautela no deferimento de pedidos de remoção e observassem as diretrizes do Conselho Nacional de Direitos Humanos sobre conflitos fundiários urbanos e rurais; quanto a decisão do Ministro Luís Roberto Barroso de junho de 2021, que suspendeu temporariamente as remoções por seis meses, sobretudo de ocupações anteriores a março de 2020 (portanto, de ocupações que existem antes do início da pandemia no país).

Ainda que com uma série de limitações, a decisão liminar favorável, que contou com o amplo apoio da campanha Despejo Zero, tem sido utilizada no front da advocacia popular e da Defensoria Pública como precedente ou linha tática de defesa na tentativa de suspender novas ordens de remoção durante a pandemia. Também tem sido usada para garantir algum atendimento habitacional para famílias que podem vir a ser removidas, nos casos enquadrados como exceção à regra de não-remoção destacada pelo Ministro Barroso — como, por exemplo, nos casos em que há risco.

Preocupa bastante o fato de que todas as iniciativas jurídicas estipulam um prazo de validade para suspensão das remoções até dezembro de 2021. Sendo assim, todos os processos suspensos poderão ser executados a partir do dia 1 de janeiro, o que acende o alerta de uma possível onda de remoções no início do próximo ano atingindo milhares de famílias que de alguma forma foram beneficiadas e protegidas pela suspensão temporária de remoções. Essas circunstâncias apontam para a insuficiência de uma suspensão temporária só até o fim de 2021, já que os efeitos sociais e econômicos devastadores da pandemia não vão se resolver apenas com o avanço da vacinação.

O mapeamento da Campanha Despejo Zero identificou que para além das mobilizações no Legislativo, a incidência política da própria campanha já contribuiu diretamente para a suspensão de pelo menos 54 casos de remoções, evitando que cerca de 7,5 mil famílias fossem despejadas. Dentre esses 54 casos mapeados em que houve algum tipo de suspensão no processo de remoção durante o trimestre de abril a junho de 2021, seis aconteceram no estado de São Paulo: cinco deles na RMSP e um no interior do Estado, no município de Piracicaba. Desde o início da Campanha Despejo Zero, articulação da qual o Observatório também faz parte, passamos a incorporar os dados levantados no âmbito da Campanha em nosso mapeamento, e vice-versa. Em todos os casos citados ocorreu ampla mobilização promovida tanto pela Campanha quanto a partir das entidades que a compõem, o que resultou em forte pressão da sociedade civil organizada, seja nos agentes ‘removedores’ seja no Judiciário, mobilizando sobretudo a premissa da defesa da vida, em um momento em que ‘estar em casa’ é uma das principais medidas para não se contaminar com o coronavírus.

Remoção violenta na avenida Zaki Narchi, ZN de São Paulo. Foto: Larissa Dandara / Ponte Jornalismo

Mesmo com as suspensões temporárias, continua sendo significativo o número de casos de remoção na Região Metropolitana de São Paulo — e por isso a derrubada dos vetos é importante. A atualização de abril a junho de 2021 do mapeamento do Observatório de Remoções aponta ao menos nove remoções na Região Metropolitana de São Paulo nesse período — mesmo número do primeiro trimestre do ano, quando identificamos dez remoções. Foram cinco casos de remoção total — ou seja, de todas as famílias — e quatro casos de remoções parciais (casos em que não há a remoção de todas as famílias, podendo ou não restar famílias ameaçadas no local). No segundo trimestre de 2021, ao menos 572 famílias foram removidas, sendo que em um dos casos de remoção total não foi possível identificar o número de famílias.

Ainda somam-se às remoções, dezesseis casos de ameaças de remoção. São ameaças que englobam tanto denúncias que chegaram ao Observatório de Remoções pela primeira vez, relativos a casos recentes ou não; quanto casos que já haviam sido mapeados anteriormente mas que, por conta da intensificação da ameaça, houve alguma nova mobilização e denúncia por parte dos atingidos e de movimentos parceiros. Em ambas situações, o resultado é que, mesmo no pico da pandemia, surgiram tanto novas ameaças de remoção quanto  ameaças antigas foram intensificadas.

Ao menos 3997 famílias se somaram ao número de famílias que vivem sob uma situação de completa insegurança habitacional, sem saber se nos próximos dias terão um teto para se abrigar ou não. Desde janeiro de 2017 até junho de 2021 já são, portanto, cerca de 224.190 famílias ameaçadas de remoção  na RMSP que podem  a qualquer momento  ir para a rua. Esses dados são seguramente  subestimados. A invisibilidade das remoções coletivas e individuais é  um desafio constante do mapeamento.

Ao analisarmos esses dados chama a atenção a participação do poder público como principal promotor das remoções. Dos 25 casos mapeados no segundo trimestre (nove remoções e 16 ameaças), dez delas estão em áreas públicas, sete em áreas privadas e em oito dos casos mapeados não foi possível identificar essa informação.

Famílias e vidas foram desestruturadas e profundamente impactadas pela pandemia, o que demonstra que políticas públicas de assistência, proteção e defesa da vida precisam seguir e se aprofundar para além da vacinação. Há um longo e delicado período de recuperação em que as lutas e mobilizações de suporte às pessoas atingidas de alguma forma pela pandemia (seja com ameaças e remoções, seja de outras maneiras) precisam seguir, se fortalecer e ocupar o centro das agendas políticas de movimentos, partidos políticos, poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e das entidades da sociedade civil como um todo.

*Pesquisadoras/es do Observatório de Remoções

Remoção na Penha Brasil, Zona Norte de São Paulo. Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte