Imagem: Reprodução/Reportagem do R7 “Sobreviventes das chuvas contam sobre tragédia em Embu das Artes (SP)”, de 03/01

*Por Raquel Rolnik

Todos os anos, no período chuvoso, assistimos pela TV as tragédias pessoais das famílias que perderam suas casas e vidas nas várias enxurradas e deslizamentos que ocorrem especialmente em territórios populares do país. E elas são geralmente mostradas em reportagens, todos anos, a partir de uma mesma narrativa, focada na dimensão humana da tragédia, ou seja, na dor dessas famílias por suas perdas. 

A dimensão humana com certeza é fundamental e precisa ser sempre mostrada. A partir disso, trago aqui outros pontos que acredito que merecem uma discussão mais aprofundada. Vou falar sobre a reportagem Sobreviventes das chuvas contam sobre tragédia em Embu das Artes (SP), do R7, que foi ao ar no domingo (03/01).

Tais tragédias, por mais que sejam de fato dramas individuais e familiares, não são absolutamente descoladas de um contexto político, coletivo e público. Mas, nesta narrativa dos dramas das enchentes, este contexto acaba sendo uma espécie de ponto cego, evidenciando uma certa ambiguidade (presente também na reportagem do R7 sobre os deslizamentos em Embu das Artes). Isso porque, por um lado, a reportagem acerta em denunciar as condições econômicas absolutamente precárias das famílias que vivem em encostas e áreas de inundação (o que é mostrado muito bem através das imagens das casas e falas dos moradores entrevistados, quando se referem a situações de desemprego, de falta de alternativas de moradia, de renda baixíssima), o que é muito importante… Mas ainda cabe a observação de que, por outro lado, enfatizar frequentemente que as famílias se encontram em “ocupações irregulares” ou “ilegais”, com algumas insinuações, inclusive, de que apesar de saberem dos riscos não deixam o local (como se dispusessem de opções concretas e viáveis de moradia) acaba contribuindo para uma culpabilização das vítimas.  

O fechamento da matéria exalta a solidariedade comunitária: apesar do desastre, pequenos comerciantes, vizinhos, igrejas e associações estão se unindo para ajudar as famílias que perderam tudo. Sem dúvida, este é um lado positivo desta e outras matérias sobre o tema. Mas a constatação de que a solidariedade existe e é possível é totalmente descolada da sua aplicabilidade enquanto política pública. 

Ao abordar então o tema das políticas públicas, a partir das declarações de gestores estatais, o assunto passa a ser o “mapa de riscos”, a fiscalização, o impedimento da ocupação, e a remoção. Ou seja, a ótica da política pública reforça a ideia de que se trata de ocupações ilegais, indevidas, e que a maneira de evitá-las seria basicamente impedir que as pessoas ocupassem determinadas áreas, e retirá-las se por acaso o fizessem. Nenhuma menção ao destino de possíveis removidos, nem mesmo ao fato de que provavelmente muitos estão ali depois de terem sido removidos… 

O foco passa a ser então o jogo de empurra-empurra entre quem deveria ter impedido, quem deveria ter fiscalizado… É como se, neste momento, a ideia de solidariedade simplesmente desaparecesse e o fundamento de sua prática — o compartilhamento de recursos com quem não tem —  estivesse apenas no plano individual da filantropia, jamais contagiando e fundamentando a política pública. 

Sim, estou me referindo a uma política pública solidária. Sim, aquela que, redistribuindo o recurso terra/moradia/renda seria capaz de impedir que indivíduos e famílias não  tivessem outro local para morar que não uma encosta sob perigo de morte. Simples assim.

*Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.