*Por Raquel Rolnik

Em um contexto, como o brasileiro, é difícil pensar no pós-pandemia, já que ainda estamos vivendo sob essa e sem muita certeza de quando finalmente os contágios e mortes terão ficado para trás. A urgência da sobrevivência cotidiana, da proteção imediata à vida e à saúde ainda é prioritária e, portanto, é muito difícil sair dessa pauta para pensar o mundo pós pandêmico do futuro. Contudo, algumas questões referentes ao mundo urbano pós pandêmico já estão sendo discutidas e circulam no âmbito do debate em torno da reconstrução.

A primeira delas é a ideia de que empresas desaparecerão e que mais pessoas exercerão seus trabalhos a partir de casa, o chamado home office. Não só o seu trabalho, mas suas compras, seus hábitos de consumo se transformariam em hábitos online, o que levaria ao desaparecimento gradual de áreas comerciais e de áreas de escritório na cidade. Além disso, fala-se também da possibilidade de pessoas viverem fora das grandes cidades, no campo ou em pequenos municípios do interior, e mesmo assim participarem do mundo do trabalho e do consumo urbano. 

Nesse momento de discussão do futuro, é preciso romper com uma ideia muito corrente na discussão das políticas urbanas, nas políticas de cidade: a ideia de imaginar que o conjunto da cidade mora exatamente do mesmo jeito, tem exatamente os mesmos hábitos, se não na realidade, pelo menos por aspiração, e não reconhecer que a experiência urbana, que a economia urbana, inclusive, a economia popular têm especificidades enormes que se moldam a partir das necessidades de sobrevivência, mas também das transformações dos modos de vida e consumo. 

Mas essas questões realmente se sustentariam na prática? Qual é mesmo o percentual de pessoas que durante a pandemia migrou para o home office, para o trabalho à distância? Será que isso chega a 30% do que é a força de trabalho entre nós nas cidades brasileiras? Provavelmente não! E mais: quantas pessoas se mudaram para suas casas de praia, de montanha ou cidades do interior? Um levantamento da Prefeitura de São Paulo divulgado pelo G1 aponta que 55 mil famílias passaram a viver em favelas durante a pandemia. Esse número muito provavelmente é maior do que o número de famílias que passaram a viver no campo. Para enfrentar este debate sem ilusões, pautado a partir da vivência de um pedaço pequeno – mas bem poderoso – da sociedade, é fundamental, portanto, relativizar essas assertivas. 

A pandemia não foi a causa de mudanças que já estavam em curso, ela foi uma espécie de catalisadora ou de aceleradora de processos que já estavam em curso. O domínio de uma economia digital, de plataformas digitais, como forma de comando do mundo de trabalho, do mundo do consumo já estava em pleno desenvolvimento e a pandemia acelerou esse processo. Mas esta migração tem implicações diferentes a depender da inserção socioterritorial de quem as vive. 

Para uma ampla análise, é importante pensar no exército de trabalhadores precarizados, auto empreendedores, que passaram a circular cada vez mais intensamente  para que essa parcela minoritária de consumidores pudesse ficar em casa, não circular. Ao tomar esse exemplo e pensar a cidade do futuro, há grandes diferenças entre pensar nesse futuro a partir de quem ficou em casa, na praia ou no interior e entre quem se manteve o tempo todo  trabalhando, circulando pelo espaço público, reinventando modos de sobreviver. 

Assim, ao pensar na reconstrução da cidade pós pandemia é fundamental pensar exatamente de que cidade, de quem estamos falando. Para isso, talvez seja mais útil, neste momento, ao invés de ficar projetando futuros excludentes, observar as reinvenções do cotidiano de grande parte da população. 

*Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Texto originalmente publicado no UOL no dia 25 de junho de 2021.