Jorge Ferreira

No dia 9 de julho de 2020, o Relator Especial da ONU sobre moradia adequada, Balakrishnan Rajagopal, pediu o fim dos despejos no Brasil. A nota foi baseada na denúncia apresentada pelo Observatório de Remoções, junto com movimentos de moradia e entidades de direitos humanos sobre o caso brasileiro, com enfoque nos casos de remoção que aconteceram entre março e junho de 2020 no estado de São Paulo, somada ao relatório do Habitat para a Humanidade Brasil que inclui também remoções que aconteceram em outros estados brasileiros.

Veja abaixo a denúncia completa em português, também disponível em espanhol.

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Frente à disseminação acelerada da pandemia do novo coronavírus pelo mundo, o Brasil perdeu a oportunidade de se antecipar e se preparar de forma qualificada para sua chegada — já que por estar geograficamente mais distante do seu epicentro inicial, teve alguns meses acompanhando de longe o avanço e os danos causados pelo vírus. Nem antes nem depois quando os números de contaminação, hospitalizações e mortes se tornaram uma realidade cotidiana e crescente, o estado brasileiro — em suas diferentes esferas e instâncias de poder — adotou alguma política integral de proteção e de suporte aos territórios e populações mais vulneráveis e expostos à contaminação e a seus efeitos negativos.

Com forte pressão da sociedade civil, meios de comunicação e partidos de oposição, conseguiu-se aprovar, no âmbito federal, um auxílio emergencial para famílias de baixa renda, trabalhadores informais e autônomos, e pessoas desempregadas. Inicialmente, o governo federal queria um auxílio mensal no valor de R$ 200, que a mobilização social e política conseguiu elevar para R$ 600. Sua permanência e continuidade não estão garantidas, mesmo quando se sabe que suas consequências ainda vão perdurar, e são diversos os obstáculos referentes ao auxílio emergencial.

Diante disso, coube a sociedade civil — com toda a diversidade, distinções e heterogeneidade que a compõe — organizar-se, mobilizar-se e se movimentar no sentido de prover medidas emergenciais e urgentes de amparo e mitigadoras dos riscos e prejuízos da pandemia, sobretudo para os mais pobres, com menos condições econômicas e de infraestrutura, e mais expostos aos riscos impostos pelo novo coronavírus. Assim, movimentos sociais historicamente e socialmente reconhecidos e organizados, entidades de classe e sindicais, associações de bairro e comunitárias, igrejas e congregações religiosas, coletivos culturais e políticos (organizados e autônomos), entidades e centros universitários e de pesquisa, assim como muitas outras redes e grupos sociais, passaram a articular e promover campanhas e ações protetivas e solidárias nos bairros, territórios e áreas de atuação que lhes cabem na tentativa de pressionar o poder público e buscar diminuir o sofrimento e incertezas que se intensificaram na vida de todos, mas com maior gravidade para os mais pobres.

O número e quantidade de ações são muitas e a lista é longa sendo impossível registrar todas, apesar dos diferentes e variados esforços. Como exemplo podemos citar a campanha “Quartos da quarentena” que propõe a utilização dos quartos vazios de hotéis existentes para a população em situação de rua ou sem condições de manter o isolamento. Na cidade de São Paulo, a prefeitura municipal acabou de encerrar um edital (que não foi o primeiro) para habilitar hotéis para a campanha, mas nenhum se inscreveu. Ou mesmos as fundamentais campanhas de doação e iniciativas preventivas, informativas e de saúde realizadas pelas próprias comunidades nas periferias, favelas e ocupações das cidades.

A partir da terceira semana de março, o estado de São Paulo entrou em estado de emergência e passou a adotar medidas de enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, tendo como uma das principais medidas o distanciamento social.

(1a) Na contramão desse entendimento, o Brasil não aprovou nenhuma legislação suspendendo os despejos e as remoções. O projeto de lei nº 1179/2020, relativo ao regime jurídico emergencial durante a pandemia, previa a suspensão de despejos por não pagamento de aluguel de imóvel urbano concedidos em caráter liminar, ou seja, decisões em menos de 15 dias sem ouvir o locatário. Mesmo tratando-se de uma medida bastante limitada, não foi mantida. Ao sancionar o texto que veio a ser a Lei nº 14.010/2020, o presidente Jair Bolsonaro vetou a medida.

O projeto de lei nº 1975/2020, que dispõe sobre “a suspensão do cumprimento de toda e qualquer medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em despejos, desocupações ou remoções forçadas, durante o estado de calamidade pública reconhecido em razão do COVID-19”, até o momento não foi à votação na Câmara dos Deputados.

No mês de junho, uma decisão judicial da Justiça Federal suspende a cobrança das parcelas mensais para todos os beneficiários da faixa 1 (para famílias com renda de até R$ 1800) do programa federal de habitação Minha Casa, Minha Vida, por três meses, no estado de São Paulo. Esta decisão foi fruto de um recurso feito pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

Também no âmbito federal, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por desenvolver políticas judiciárias no âmbito nacional, editou sucessivas recomendações determinando não só a suspensão de prazos judiciais, mas também a suspensão do cumprimento de mandados judiciais de reintegração de posse – Resolução Nº 322 de 01/06/2020, Portaria Nº 79 de 22/05/2020, Resolução Nº 318 de 07/05/2020, Resolução Nº 314 de 20 de abril de 2020, Resolução Nº 313 de 19 de março de 2020. Os prazos dos processos eletrônicos voltaram a correr no início de maio e o cumprimento dos mandatos passou a ser autorizado no início de junho, “desde que o cumprimento do ato não resulte em aglomeração de pessoas ou reuniões em ambientes fechados”. Tais recomendações, no entanto, não vinculam a atuação dos/as magistrados/as.

No âmbito do estado de São Paulo, não há qualquer medida dos Poderes Executivo e Legislativo para barrar os despejos e remoções. No âmbito do Poder Judiciário, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, seguindo o CNJ, editou sucessivas normativas suspendendo os prazos judiciais e os atos presenciais cuja prática seja incompatível com o isolamento social. O prazo previsto para que tais recomendações vigorem é, atualmente, 30 de junho, sendo que pode ser adiado – Provimento CSM nº 2561/2020, Provimento CSM nº 2560/2020, Provimento CSM nº 2554, de 24 de abril 2020, Provimento CSM nº 2555, de 24 de abril de 2020, Provimento CSM nº 2.549 de 23 de março de 2020, Provimento CSM nº 2550, de 23 de março de 2020, Provimento CSM nº 2545, de 16 de março de 2020.

O Ministério Público do Estado de São Paulo abriu uma Ação Civil Pública para apontar a existência de núcleos precários de moradia em diversas regiões do estado, sobretudo na região metropolitana, marcadas pela inexistência de abastecimento de água, elemento essencial para medidas preventivas do coronavírus. A decisão liminar, nesta ação civil pública, determinou a apresentação de cronograma de implementação de medidas que garantam o abastecimento diário de água potável, por qualquer meio, observado o padrão mínimo por habitante estipulado por autoridade de saúde, em todas as favelas e aglomerados subnormais presentes nos municípios atendidos pela SABESP, sem qualquer cobrança de taxas ou ônus aos habitantes atendidos. No entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a liminar, a pedido do governo do Estado, entendendo que não cabe ao Poder Judiciário interferir nos critérios de conveniência e oportunidade das medidas adotadas no enfrentamento da epidemia, sob risco de ferir a autonomia entre os poderes do Estado e o princípio constitucional da reserva de administração.

Por fim, o Ministério Público do Estado de São Paulo enviou recomendação ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pela suspensão das ordens de reintegração de posse.

No âmbito municipal, no município de São Paulo suspendeu por três meses as dívidas de locação social por meio do decreto nº 59.329/2020 e da portaria nº 32/SEHAB.G/2020.

(1b) As medidas que relatamos até aqui são não apenas limitadas  mas também não estão sendo cumpridas . O que temos visto no estado de São Paulo, na prática, é a continuidade e efetivação de remoções forçadas de populações, fazendo com que mulheres (em muitos casos, gestantes), homens, crianças, idosos, pessoas portadoras de deficiências e outras comorbidades fiquem expostos à violência da remoção e da falta de moradia, acrescida da exposição ao novo coronavírus. Às remoções, somam-se os incêndios em favelas e ocupações, sem qualquer política de atendimento que, ao levar a perda da moradia, expõem as situações de precariedade a que grande parte da população de territórios populares está submetida.

Segundo dados levantados pelo Observatório de Remoções, desde março deste ano, em plena pandemia, somam-se ao menos doze casos de remoções e incêndios no Estado de São Paulo, contabilizando aproximadamente 2.000 famílias atingidas. Foram cinco casos de incêndios, dois casos de remoção extrajudicial promovida por agentes privados, três casos de remoções extrajudiciais promovidas por agentes dos poderes municipais, e duas remoções judiciais promovidas por privados. Além disso, neste mesmo período, foram contabilizados ao menos seis novas ameaças de remoção com mandado judicial expedido e que podem ser cumpridas a qualquer momento.

Em duas ocupações recentes, no entanto, o Poder Judiciário, com manifestação favorável do Ministério Público, deram o aval pela execução das reintegrações de posse. Foi o caso da ocupação Taquaral, no município de Piracicaba, que abrigava 50 famílias, e da ocupação Cícero Ibiapina, no distrito de Guaianazes, no município de São Paulo, que abrigava 900 famílias. Cabe salientar que, em nenhum dos casos, foi ofertado alguma alternativa de atendimento habitacional às famílias atingidas.

Dentre as remoções, quatro ocorreram sem processo judicial (por via administrativa ou realizada pelos proprietários, em dois casos). Dois destes casos aconteceram no município de São Bernardo do Campo. A Prefeitura realizou demolições de casas com base no decreto nº 20.417, de 2018, voltado à fiscalização de novas ocupações mas que também atinge bairros e áreas já consolidadas. Os outros dois casos aconteceram no município de São Paulo, sendo que um foi promovido pela Prefeitura e outro por empresas privadas, com apoio da polícia. Por fim, houve cinco casos de incêndios que causaram perda de bens e pertences, pondo em risco a vida das famílias, que foram obrigadas a deixar suas casas. Cabe ressaltar a omissão do poder público (i) antes dos incêndios — em viabilizar obras e melhorias que garantissem segurança a essas famílias ou seu atendimento definitivo em caso de ser inviável medidas preventivas; (ii) depois dos incêndios — em assegurar o acolhimento e bem-estar dos atingidos.

Ainda dentre os casos de remoção, quatro contaram com a presença de forte aparato policial que impediu defensores populares de acompanharem a situação de perto, sendo que em dois casos houve o uso de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra os moradores que estavam sendo removidos e em um caso houve um episódio de agressão por parte da Guarda Civil Militar a um militante que acompanhava a situação.

As reintegrações de posse judiciais aconteceram à revelia das normativas do Poder Judiciário. Em alguns casos, não referidos acima,  a intensa mobilização dos moradores, movimentos de moradia e populares e sociedade civil organizada, com atuação de advogados/as populares, defensores/as públicos/as, conseguiu suspender as remoções. A maioria dos casos que conseguiram a suspensão de remoções se tratavam de processos que já tinham decisão antes da pandemia, com reintegrações de posse marcadas para acontecer depois da segunda quinzena de março.

Diante da gravidade destas remoções e das repercussões irreversíveis que provocam na vida dos atingidos, é urgente a sensibilização do Poder Judiciário, bem como dos demais órgãos do sistema de justiça, pela suspensão de todas as remoções. Movimentos de moradia e entidades de defesa, seguem reivindicando ao Tribunal de Justiça do Estado ações efetivas para a suspensão de despejos e remoções coletivas.

(1c) Na esfera estadual, o governador do estado de São Paulo suspendeu o corte e a cobrança de contas de água e esgoto para moradores de baixa renda pertencentes às categorias de Uso Residencial Social e de Uso Favela, durante os meses de abril, maio, junho e julho. A Tarifa Social Residencial é destinada a residências unifamiliares, desempregados, habitações coletivas ou em área de risco que atendam os critérios definidos pelo comunicado tarifário. No âmbito privado, a Agência Nacional de Energia Elétrica suspendeu por 90 dias, desde março, o corte no fornecimento de energia em caso de inadimplência para todas as categorias de consumidor, e não só os de baixa renda.

As inúmeras ações e iniciativas apresentadas ao longo deste documento, revelam a intensidade das intervenções e negociações que foram travadas — em âmbitos, instâncias e esferas distintas demonstrando grande capilaridade da discussão e disputas — em torno do direito à moradia adequada e que buscaram evitar a efetivação de remoções forçadas.

É preciso reconhecer que houve medidas concretas que possibilitaram um pouco menos de sofrimento e angústia durante a pandemia, especialmente às famílias de baixa renda, como, por exemplo, a suspensão de cortes e cobranças nas contas de água e esgoto, como aconteceu no estado de São Paulo. Contudo, é infelizmente inquestionável que, mesmo em meio a uma pandemia de dimensão global — mas que por conta das históricas e estruturantes desigualdades brasileiras, que se reatualizam, atingem de forma mais dura os mais pobres e vulneráveis –, as remoções forçadas continuaram ocorrendo. Se fora do contexto da pandemia, esse evento já representa uma carga incomensurável de violência e de desamparo; no atual momento, quando a perda da casa adquire mais uma camada de perversidade, a situação se agrava ao deixar expostos e em uma condição ainda mais vulnerável aqueles e aquelas que perdem o meio comprovadamente  mais eficaz e seguro até agora de proteção ao vírus.

Por todas essas razões, elaboramos o presente documento como evidência e denúncia dessas graves violações.

As informações foram coletadas junto à entidades da sociedade civil e movimentos que atuam com a promoção do direito à moradia e subscrevem este relatório.

Observatório de Remoções
União dos Movimentos de Moradia de São Paulo e Ribeirão Preto (UMM)
Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
Associação Rural Renascer da Estação Remanso dos Pequenos Agricultores de Araras
Central de Movimentos Populares (CMP)
Movimento Sem Teto do Centro (MSTC).