Agência Brasil / Wikimedia
Raquel Rolnik *

A prefeitura de São Paulo divulgou, no final de janeiro, um Censo da População em Situação de Rua 2019, que contabilizou 24.344 pessoas nessa condição na cidade. Os residentes na cidade já percebiam que havia uma verdadeira explosão do número de pessoas em situação de rua no seu cotidiano. E o Censo confirmou: entre a pesquisa realizada em 2000 que contabilizou mais de 10 mil pessoas morando na rua e hoje, o aumento foi quase de 180%. Vale lembrar que recenseadores denunciaram o subdimensionamento da contagem, já que por questões metodológicas, aqueles que moram em barracões de madeirite, ou outras formas improvisadas de moradia embaixo de viadutos, por exemplo, não foram contabilizados.

Insistimos aqui que a explosão da presença de moradores de rua é essencialmente uma crise habitacional, apesar dos dados divulgados pela prefeitura terem indicado que apenas 13% dos moradores recenseados apontaram a falta de moradia como motivo principal de sua presença na rua. Metade das pessoas que responderam o Censo alegaram que conflitos familiares os levaram às ruas e 33% citaram a dependência química ou problemas de saúde mental. E para 23% foi a perda do trabalho que os levou a esta condição. De fato, o Brasil vive crise econômica. O desemprego na capital paulista subiu da casa dos 12% para mais de 16% entre 2015 e 2019, de acordo com pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Esse cenário negativo afeta desproporcionalmente os mais pobres, que são mais vulneráveis do ponto de vista econômico e também com menos possibilidades de acionar uma rede de proteção — também atingida pela crise – durante estas conjunturas. Conflitos familiares, dependência química e falta de trabalho acabam constituindo um mesmo processo multidimensional que se expressa tanto no campo da saúde mental como no econômico. E a moradia? Ora, os conflitos familiares decorrentes dessa situação implicam em impossibilidade de continuar vivendo sob o mesmo teto. E é aí que entra a crise habitacional: não existe na cidade nenhuma alternativa de moradia para quem esta vivendo essa situação. A alternativa é a rua.

A situação se agrava com as perdas habitacionais decorrentes de outros processos, particularmente despejos e remoções. O Observatório de Remoções, que procura mapear e acompanhar esses processos, indicou que mais de 10 mil famílias foram afetadas em 2019 apenas por remoções coletivas. De 2017 a 2019, mais de 31 mil famílias foram removidas de suas casas. As remoções costumam ocorrer em ocupações coletivas de terrenos e edifícios, sob mandatos de reintegração de posse, ou justificadas por riscos geológicos e abertura de frentes de obras públicas. As pessoas que perdem suas casas nessas condições muitas vezes não são atendidas com alguma alternativa de moradia. Por isso, essa parcela da população acaba se instalando em alguma condição precária – até mesmo na rua.

Quando nos referimos a rede de proteção capaz de acolher e apoiar os mais vulneráveis em momentos de crise, estamos falando da enorme falta que faz uma política pública, integrada e proativa nesta conjuntura. As respostas que temos hoje são baseadas em ofertas de pacotes setoriais, como os abrigos; ou a oferta de moradia em parcerias público-privadas que nada têm a ver com a demanda ou condição das pessoas; ou políticas de saúde mental baseadas no internamento e reclusão, que já se mostraram ineficientes. O que estamos esperando então para agir? Fazer um próximo censo mostrar que são 50.000?

* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Texto originalmente publicado no UOL.