Foto: Vitor Nisida

Por Bianca Tavolari*

Após mais de uma década de debates, o Supremo considerou os Conselhos de Representantes de São Paulo como constitucionais. Entre 2004 e 2020, enquanto o debate acontecia, foram criados e eleitos os Conselhos Participativos (CPMs), uma versão semelhante aos de Representantes, mas com prazo de validade. Estariam valendo até que os Conselhos de Representantes pudessem existir e estarem em funcionamento. Ou seja, até agora.

Esta novidade vai provocar alterações em cascata. Primeiro porque além de estes conselhos acompanharem as políticas em seus territórios, eles indicam representantes para compor outros conselhos, como o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), que monitora as políticas urbanas e é o espaço onde se dá o debate da revisão do plano diretor estratégico de São Paulo, infelizmente prevista para este ano. Esta revisão – que já tem sido questionada por ser feita no meio da pandemia – agora ganha um novo e claro questionamento. Para que o CMPU possa deliberar sobre a política urbana, é preciso antes solucionar a transição dos Conselhos Participativos para os Conselhos de Representantes.

Não basta apenas mudar o nome do conselho – de Participativos para Representantes – e seguir o baile: a composição prevista para o Conselho de Representantes é diferente. Além das vagas para a sociedade civil, também inclui vagas para partidos políticos representados na Câmara de Vereadores. É preciso, portanto, rediscutir os conselhos, seu formato, como têm funcionado e a articulação entre eles diante da experiência temporária dos CPMs.

O poder público – alertado em reunião na última quinta-feira (24 de junho) pelos conselheiros do CMPU sobre a condição irregular dos Conselhos Participativos face à decisão do Supremo – tem ignorado esta irregularidade ao não promover a transição para o Conselho de Representantes. Inclusive, deu posse aos conselheiros participativos na última reunião do CMPU, como se isto por si só resolvesse o problema anterior de paridade entre sociedade civil e poder público. Além disso, propôs recortar ainda mais o grupo que irá debater o plano diretor, criando uma comissão interna de, no mínimo 3 pessoas, para acompanhar a revisão do PDE. Ao aprovar esta proposta, o Conselho, irregular em sua composição, abre mão de fazer o que deveria fazer: acompanhar o processo de debate e revisão do plano diretor de São Paulo, conforme prevê seu regimento.

Entenda os capítulos desta história:

Pelo adiamento da revisão do plano diretor

Para aqueles que acompanham a política municipal, não há outra pauta com maior centralidade do que as revisões de planos diretores das grandes capitais. O plano diretor é o instrumento básico da política urbana, estabelece critérios para o cumprimento da função social da propriedade e também projeta a cidade para o futuro. As dificuldades de fazer cumprir os calendários de revisão, estabelecidos quando ninguém nem mesmo poderia sonhar com uma pandemia da proporção que estamos vivendo, ocupam o ainda pequeno debate da nossa esfera pública, voltada predominantemente – e com boas razões – para questões federais. Dois argumentos são mobilizados pela sociedade civil. Em primeiro lugar, a impossibilidade de levar adiante um processo participativo da envergadura do plano diretor em meio à pandemia. Em segundo, as dificuldades de saber o quanto os efeitos da pandemia nas cidades vão perdurar, impedindo que haja um planejamento sólido com base em tendências e dados. Ainda que estas questões sejam relevantes, quero chamar atenção para um ponto cego no debate público, relacionado especificamente a São Paulo. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal, de outubro de 2020, sobre conselhos e sua atuação na elaboração e monitoramento de políticas urbanas, mudou o jogo. E provoca uma avalanche: a decisão do Supremo tem efeito dominó em São Paulo, atingindo em cheio o procedimento legal para a revisão do plano diretor.

Voltando no tempo para entender o debate sobre a constitucionalidade

Em 2004, a então prefeita Marta Suplicy sancionou a Lei n.13.881/2004 que criava o Conselho de Representantes. A ideia era que São Paulo tivesse conselhos de participação social descentralizados no território, a partir das subprefeituras, para acompanhar políticas públicas – como o plano de metas e o plano diretor – e monitorar a adequada aplicação do orçamento municipal, entre outras funções. A lei regulamentou os artigos 54 e 55 da Lei Orgânica do Município, que havia previsto a instauração deste Conselho. O Ministério Público, porém, entendeu que a medida era inconstitucional. O principal argumento era o vício de iniciativa parlamentar, com interferência no campo de atuação do Executivo. Segundo o raciocínio, haveria violação do princípio da separação de poderes, uma vez que o artigo 61, §1º, II, “e” da Constituição de 1988 dispõe que a criação de órgãos da administração pública é de iniciativa privativa do chefe do Executivo. Neste caso, tínhamos um Conselho de Representantes criado pelo Legislativo.

A controvérsia chegou ao STF em 2010 e, nove anos depois, em 2019, foi reconhecida a repercussão geral do Recurso Extraordinário 626.946 de São Paulo, no Tema 1040. A decisão foi tomada em plenário virtual no ano passado, com placar acirrado. O voto do relator, ministro Marco Aurélio Mello, foi acompanhado por quatro ministros. O voto divergente, do ministro Alexandre de Moraes, foi acompanhado por outros quatro. Diante da ausência do ministro Celso de Mello, o então presidente Toffoli desempatou em favor de Marco Aurélio.

Marco Aurélio entendeu não haver inconstitucionalidade na criação do conselho, principalmente por não se tratar de órgão integrante da administração direta ou autárquica. A Lei Orgânica inclui o Conselho de Representantes como parte da estrutura do Legislativo. Além disso, os cargos não são remunerados e nem preveem exercício de função pública em sentido estrito. A própria Lei Orgânica prevê, em seus artigos 14, XXI e 37, §1º, que cabe privativamente à Câmara disciplinar o funcionamento de conselhos. Um dos argumentos centrais gira em torno da ideia de que conselhos encarnam a democracia participativa – ou o “espírito de 1988”, nas palavras de Marco Aurélio.

Assim, o STF decidiu que é constitucional a lei de iniciativa parlamentar que crie conselho de representantes da sociedade civil, integrante da estrutura do Poder Legislativo, com atribuição de acompanhar ações do Executivo. Para além do placar apertado, que grande controvérsia poderia estar pressuposta aqui?

Conselhos Participativos estão com o prazo de validade expirado

Desde 2004, a instauração do Conselho de Representantes ficou suspensa em São Paulo, aguardando a Justiça. O conselho com participação territorial descentralizada nunca foi implementado nestes moldes. No entanto, uma proposta bastante parecida foi levada adiante na gestão do então prefeito Fernando Haddad. A lei n. 15.764/2013 criou os Conselhos Participativos Municipais (CPMs), um para cada subprefeitura da cidade, com representantes eleitos pela sociedade civil. As atribuições eram muito semelhantes às do Conselho de Representantes. Mas, desta vez, tratava-se de iniciativa do chefe do Executivo municipal. O reconhecimento da pendência judicial é expresso no art. 35, §2º: “Os Conselhos de que trata o caput subsistirão até que os Conselhos de Representantes de que tratam os arts. 54 e 55 da Lei Orgânica possam validamente existir e estarem em funcionamento”. Em outras palavras: Conselhos Participativos Municipais só existem para preencher o vazio do Conselho de Representantes, cuja legalidade estava em suspenso. Os CPMs já foram criados com prazo de validade.

Dezesseis anos depois da contestação de constitucionalidade, o STF reconheceu a legalidade do Conselho de Representantes. O que significa, simplesmente, que, desde novembro de 2020, não há mais base legal para que os CPMs possam existir. Como o prazo de validade expirou, o poder público deveria ter começado a planejar a transição de um conselho para o outro para que não haja vazios de participação social.

A lei é clara ao estabelecer dois critérios para o prazo de validade: os CPMs subsistem até que os Conselhos de representantes (1) possam validamente existir e (2) possam estar em funcionamento. A decisão do STF garantiu o primeiro critério, ou seja, a validade legal dos Conselhos de Representantes. O segundo critério – colocar os Conselhos de Representantes em funcionamento – depende exclusivamente do poder público, que, passados nove meses da decisão do STF, não tomou nenhuma medida concreta para iniciar a transição. Não é um arranjo fácil: os atuais conselheiros do Conselho de Representantes foram eleitos e não podem ser responsabilizados de qualquer forma diante da mudança de cenário. É dever do poder público planejar esta transição com todos os atores sociais envolvidos.

Uma nova ilegalidade no debate do plano diretor 

Hoje, há 28 CPMs em toda a cidade de São Paulo, com representantes eleitos pela população. Para além das atribuições de acompanhamento de políticas em seus territórios, o conjunto de CPMs ocupa 8 vagas em outro conselho, o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU). O CMPU, por sua vez, tem como atribuição fundamental monitorar as políticas urbanísticas, com especial destaque ao plano diretor, cuja revisão está prevista para este ano em São Paulo.

A discussão sobre a revisão do plano diretor está acirrada. Na penúltima reunião do CMPU, conselheiros manifestaram que não havia paridade entre a sociedade civil e o poder público. A principal razão estava no fato de que as 8 vagas que vinham dos CPMs não haviam sido ainda preenchidas pelo poder público. Nem mesmo o cronograma da revisão do plano diretor pode ser votado em razão deste problema de composição.

No dia 11 de junho, o poder público nomeou os 8 representantes dos CPMs ao CMPU (sim, são muitas siglas). O procedimento para a eleição está sendo contestado, tanto por conselheiros quanto pelo Ministério Público. Mas nada disso tem base na legalidade. O prazo de validade legal dos CPMs expirou em outubro de 2020, o que significa que eles precisarão ser desfeitos, em uma transição para os Conselhos de Representantes. Mesmo assim, na última quinta-feira, dia 24 de junho, o poder público, ciente das irregularidades, deu posse aos conselheiros participativos junto ao CMPU e colocou pautas relativas ao plano diretor em votação.

Irregular na sua composição, ainda deliberou sobre outros temas. Mas como sair desta cascata de irregularidades? A solução não é simples nem fácil. Voltar ao Conselho de Representantes significa, também, discutir uma mudança substantiva: o arranjo anterior previa 18 vagas para a sociedade civil e outras 9 para os partidos políticos com representação na Câmara. Não se trata de simplesmente desfazer, mas de mudar critérios. Se a decisão do STF for levada a sério, cabe ao poder público e à sociedade civil iniciarem uma discussão pública sobre o melhor arranjo destes conselhos diante da experiência temporária dos CPMs, em que não havia representantes de partidos.

Diante da expiração do prazo de validade dos CMPs, como ficam as 8 cadeiras do CMPU? Sem resolver este imbróglio, o CMPU não poderá deliberar sobre qualquer tema de política urbana – o que inclui, principalmente, a revisão do plano diretor, em pauta em São Paulo neste 2021 – podendo ter suas decisões questionadas e ter que revê-las, por estar em situação irregular. Fechar os olhos para a decisão do Supremo é conduzir um processo eivado de ilegalidades. 

Este texto, em uma primeira versão mais enxuta, foi publicado no JOTA.

* Professora do Insper, pesquisadora do Cebrap e co-coordenadora do Observatório da Revisão do Plano Diretor de São Paulo