O céu mais limpo já é perceptível em São Paulo. Fotos: Ronny Santos/Folhapress

Por Raquel Rolnik *

Em plena crise que afeta profundamente indivíduos, famílias, comunidades, cidades e o planeta, uma notícia boa: estamos assistindo a uma queda acentuada na poluição atmosférica, a ponto de reduzir as emissões totais de carbono no mundo. A China reduziu a emissão de carbono na atmosfera em 25% — um número muito significativo. Esse fenômeno também está ocorrendo nos outros países que reduziram drasticamente suas atividades.

Parte importante da queda na poluição está diretamente relacionada à queda de dióxido de nitrogênio (NO2) e outros poluentes que estão presentes nas emissões feitas pelos automóveis, caminhões e ônibus. No nosso caso específico, em São Paulo, já ocorreu uma redução importante desses níveis, principalmente, em função das restrições da circulação. Segundo a professora Maria de Fátima Andrade, do Instituto de Astronomia Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, na capital paulista essa redução pode ter alcançado os 50%, desde o início da paralisação.

Conforme os dados da CETESB , na estação Cerqueira César a redução da concentração de partículas inaláveis chegaram a 55,2%, entre os dias 11 e 25 de março. Além de contribuir para a redução das emissões totais de gases na atmosfera e portanto incidir no ritmo e intensidade das mudanças climáticas, a diminuição da poluição tem um grande impacto na saúde. Neste estudo com participação do professor Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina (FM) da USP, fica clara a relação direta entre tempo de exposição ao ambiente poluído e o surgimento de lesões pleurais (na membrana que reveste o pulmão).

Se o coronavírus mata por debilitar o sistema respiratório, todos os dias os poluentes jogados na atmosfera também atacam exatamente os brônquios e pulmões de milhares de pessoas expostas a estas emissões, sacrificando vidas e sobrecarregando os sistemas de saúde.

Um segundo impacto positivo da paralisação é a enorme redução de acidentes e mortes no trânsito. Ainda não temos essa contagem precisa, uma vez que esta estatística é atualizada todo dia 19, no portal Infosiga-SP. Mas, claramente, isso já aparece nos pronto-socorros e nas UTIs de todo Brasil. De acordo com a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), entre 50 e 60% dos leitos de UTI em todo o país são ocupados pelos acidentados do tráfego. São em média 100 mortes e 600 acidentes com algum tipo de lesão que ocorrem diariamente. Todos os dias, mais que os mortos diários pelo coronavírus.

As medidas adotadas para buscar controlar os efeitos da pandemia revelaram o pacto de morte inscrito nas nossas políticas de mobilidade. E depois que a pandemia passar? Vamos voltar ao que éramos antes? Vamos continuar insistindo em um modelo de organização das cidades e da mobilidade das pessoas e das cargas no nosso país totalmente dependente dos combustíveis fósseis, dos automóveis, dos caminhões, dos ônibus — um modelo que não apenas polui, como também mata?

Ou vamos tomar seriamente a ideia de reestruturar a cidade e os sistemas de circulação não apenas promovendo aqueles que têm outra matriz energética, mas também fortalecendo as possibilidades de deslocamento a pé e modos não motorizados. Tudo isso depende, evidentemente, de um padrão que diminua drasticamente a necessidade de percorrer distâncias longas. Ou seja, chega de condomínios de beira de estrada, chega de conjuntos habitacionais no meio do nada, chega de quilômetros de bairros exclusivamente residenciais.

Ao ouvir a construção de um consenso entre economistas de que será necessário um plano de ativação econômico para recuperar o país, fico pensando nas medidas que vão aparecer para salvar a pátria: por exemplo, incentivar fortemente a indústria automobilística para gerar empregos, sem nem por um segundo repensar seu impacto sobre a vida.

Crise é oportunidade para mudança, ou para fortalecer um modelo que já se revelou mais do que obsoleto — assassino.

*Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.