Luiz Guarnieri/Brazil Photo Press/Folhapress

Stela Da Dalt, Amanda Silber Bleich, Paula Freire Santoro, Débora Grama Ungaretti *

O Pacaembu está fechado e a inexistência de um Grupo Gestor do Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Pacaembu impede o controle social da concessão. O colegiado nunca foi formado. Seus portões se fecharam devido à pandemia e nunca mais se abriram à cidade. Isso fez com que as pessoas passassem a monitorar as obras da Concessão pelas frestas do portão, o que agora nem é mais possível, pois um grande pavilhão foi erguido sem as devidas aprovações (ao que tudo indica), bem em cima do histórico campo de futebol, obstruindo a visibilidade do conjunto a partir de seu acesso principal pela praça Charles Miller. E não parou por aí, recentemente novas restrições apareceram: ficou em sigilo um processo administrativo no qual a concessionária pede, dentre outras compensações face à pandemia, a inclusão da Praça Charles Miller na concessão. Já pensou se esta moda “pega” e vários equipamentos são anexados a concessões vigentes, sem os processos de uma nova concessão? E não se trata de qualquer praça, trata-se da Charles Miller que recebeu os “órfãos do Pacaembu” fechado, funcionando na pandemia como um importante parque urbano.

O processo administrativo que estava em sigilo é um pedido da concessionária Allegra Pacaembu, responsável pela gestão administrativa do complexo, de renegociação do contrato de concessão em função dos “prejuízos” do período da pandemia, visando o reequilíbrio econômico. A solicitação foi feita em junho de 2021, quando a Allegra enviou à prefeitura um Pedido de Revisão Extraordinária do Contrato de Concessão, argumentando que a arrecadação advinda da concessão do Pacaembu foi afetada financeiramente pela pandemia. Argumenta que houve erros de cálculo na área construtiva do espaço da concessão (o que parece não ter a ver com a pandemia) e o atraso da emissão de alvará e outros documentos por parte da prefeitura (idem), necessários para início das obras. Depois do pedido passar pelo Tribunal Municipal de Contas (TCM) em janeiro, o processo entrou em sigilo e ficou fechado até o final da semana passada, quando o prefeito Ricardo Nunes, ao ser questionado pela Globo, afirmou não estar ciente do sigilo da matéria e liberou o acesso aos documentos.

No pedido ela solicita compensações financeiras em função da pandemia, o que por si só é polêmico: imagine se todos que perderam com a pandemia pedirem compensações para os governos? Por que esta concessionária merece mais que um pequeno empreendedor, por exemplo? Será que todos os concessionários vão pedir compensações? E concessões que lucraram mais com a pandemia, devolverão sua rentabilidade para o poder público? Esta compensação se justifica?

Aí incide outra polêmica: a concessão funcionou, o equipamento não ficou parado durante a pandemia, várias reformas aconteceram — que não ficaram na dependência de alvarás públicos — e vários eventos comerciais, que geram renda, também se deram no complexo.

A concessão do Pacaembu teve seu início em outubro de 2019 e em janeiro de 2020 passou para administração privada da empresa Allegra, com vigência de 35 anos, possibilitando a exploração comercial do equipamento público, em tese mantendo os interesses públicos. Desde então, a empresa vem realizando uma série de “modernizações” no complexo, dentre eles a demolição do Tobogã, feita para dar lugar a um shopping (ou “edifício multifuncional”), a demolição das arquibancadas laterais para possibilitar a construção de áreas de eventos, dentre elas uma “arena de games” (E-Sports), e a construção do “Pavilhão Pacaembu”, todos voltados para a transformação do Pacaembu em  um complexo de entretenimento e hotelaria de alto padrão.

Estamos testemunhando a descaracterização de um histórico equipamento público da cidade, que prioritariamente já sedia e segue se preparando para receber mais eventos lucrativos, eventos que ocorrem em detrimento dos usos públicos, gratuitos, voltados à população, que se fecharam e não parecem ter prazo para voltarem a funcionar. Durante a pandemia abrigou locações publicitárias, shows e cinema “Drive-in” (com ingressos que variaram entre 200 e 400 reais por veículo!), abrigou hospital de campanha financiado pelo poder público e, futuramente, tem previsto receber um show da cantora Gal Costa (se liga, Gal!) e um almoço de dia das mães com o Padre Fábio de Melo, todos pagos. Será que estes eventos estão sendo contabilizados nesta negociação das perdas com a pandemia?

Uma outra polêmica se dá em relação ao que a concessionária pediu como compensação neste processo:

  • a inclusão da Praça Charles Miller na concessão;
  • a extensão de 15 anos do contrato de gestão, que passaria a vigorar por 50 anos;
  • e a redução do valor de outorga a ser pago à prefeitura (vale destacar que por “outorga” nos referimos ao valor que a concessionária que venceu a concessão do Pacaembu se propôs a pagar quando participou do Edital de Concorrência, correspondente à R$ 111 milhões).

A inclusão da Praça Charles Miller no contrato de concessão, podendo explorar economicamente este espaço público da cidade, apareceu como principal forma de compensação financeira. E dentre os documentos que estavam em sigilo está o aval interno da Secretaria Executiva de Desestatização e Parcerias para a inclusão da Praça Charles Miller no contrato de concessão, argumentando que a medida seria coerente com o Edital, vantajosa do ponto de vista econômico-financeiro ao poder concedente e de interesse público. Mas uma concessão pode anexar e desanexar espaços? Uma praça pode ser concedida sem ter o processo de concorrência?

E, como pode a concessão de um espaço público acontecer sem que haja diálogo com a população? Como pode a mesma secretaria de governo, que anteriormente negou que a praça fizesse parte da concessão, desconsiderar o fato de aque Charles Miller integra o Sistema Municipal de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres (SAPAVEL), o que a torna uma área verde ajardinada com finalidade pública, cuja gestão demanda a elaboração de um Plano Diretor e um Conselho Gestor, antes de ser concedida para a iniciativa privada, como é o caso do Parque do Ibirapuera e outros Parques Municipais.

A Praça Charles Miller é um importante espaço de encontro e lazer em São Paulo. Abriga feiras livres e de artesanato, reúne famílias, pessoas praticando esportes, crianças aprendendo a andar de bicicleta, patins e patinete. A praça também é linha de partida e chegada de eventos de corrida — que geram arrecadação para o município —, e palco para eventos de exposição de carros. É um espaço democrático, que teve seu uso ainda mais intensificado após o fechamento do complexo esportivo do Pacaembu e o início da pandemia. Com a maioria dos equipamentos de lazer fechados e o acesso limitado ao Pacaembu, a Praça Charles Miller se tornou um parque na cidade. Alguns dos “órfãos do Pacaembu” passaram a utilizar a praça para desempenhar as atividades esportivas que antes realizavam dentro do complexo. Será que teremos também os “órfãos da Charles Miller”?

A praça tem uma importância que vai além do esporte e do lazer: o espaço já foi palco de manifestações populares que marcaram a história brasileira, como o primeiro comício por eleições diretas para presidente da república (após 22 anos sem atos políticos devido à ditadura militar) que, segundo estimativas da época, reuniu aproximadamente 15 mil pessoas em novembro 1983. O evento foi o primeiro dos 47 atos e manifestações que marcaram a campanha das Diretas Já.

Esses fatores deveriam ser suficientes para que fosse aberto um diálogo amplo e democrático sobre a possibilidade (ou impossibilidade) de estender a concessão do Pacaembu à Charles Miller, ao invés de restringir a discussão a uma Secretaria e poucos funcionários.

Não queremos ser órfãos da Praça Charles Miller! 

* Stela Da Dalt é mestranda em Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo pelo IAU-USP, com formação em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP (2007-2012). Atua também como Conselheira Participativa Municipal pelo Conselho Participativo da subprefeitura da Sé (CPM-Sé). Amanda é urbanista e arquiteta pela Escola da Cidade, graduanda Gestão de Políticas Públicas na EACH-USP e pesquisadora do LabCidade; Paula é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade; Débora é doutoranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade.