Divulgação Ocupação Cidade Locomotiva

Por Benedito Barbosa, Yan Funck e Débora Ungaretti *

A Ocupação Cidade Locomotiva, localizada na zona norte de Ribeirão Preto, precisou se mobilizar longo desta semana para barrar a realização de uma vistoria/perícia para levantamento topográfico no âmbito de um processo de reintegração de posse no dia 15 de abril. A manutenção do agendamento da referida vistoria descumpria o Provimento nº 2.545/2020 do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, que suspendeu prazos processuais e atos de oficiais de justiça durante a pandemia causada pelo novo coronavírus.

A zona norte do Município de Ribeirão Preto concentra o maior número de ocupações e favelas da cidade. Em 2010, segundo o Plano Local de Habitação de Interesse Social, esta região contava 25 núcleos de favelas, número defasado com a realidade atual. Lá também estão localizadas a linha férrea da antiga companhia Mogiana (que cortava o Estado de São Paulo) e o Aeroporto Leite Lopes, com os quais a proximidades dos núcleos habitacionais, há anos, motivam inúmeros conflitos fundiários. Diversas dessas ocupações estão ameaçadas ou foram removidas por processos de reintegração de posse, promovidos por agentes públicos ou privados, que não proporcionam direitos de defesa aos moradores ou alternativas à remoção forçada (com exceção do encaminhamento ao abrigo para pessoas em situação de rua da cidade – CETREM). Em alguns desses, como foi o caso da Favela da Família em 2011, a remoção dos moradores se deu de maneira violenta, colocando em risco a vida das pessoas. Porém, mesmo após as remoções, outras famílias ocupam hoje dezenas de terrenos abandonados, devido a enorme desigualdade social combinada com a falta de alternativas habitacionais no município.

A ocupação Cidade Locomotiva, filiada à União dos Movimentos de Moradia (UMM), se encontra em situação semelhante a diversos desses casos da Zona Norte de Ribeirão Preto. Próxima à linha de trem desativada, abriga cerca de 370 famílias desde 2015. Em fevereiro deste ano, foi determinada judicialmente a realização de uma vistoria, que seria realizada nesta semana, para levantamento topográfico e fiscalização, com força policial, de parcela da área, reivindicada pelas empresas COPERSUCAR – Cooperativa de Produtores de Cana-de-açúcar, Açúcar E Álcool do Estado de São Paulo, e Copersucar S/A para construção de um pátio de manobra ferroviária. A primeira, uma cooperativa de usineiros de cana-de-açúcar, e a segunda, uma das maiores empresas de comercialização e exportação de produtos sucroalcooleiros do mundo, formalizaram permissão de uso gratuita da faixa de domínio da Ferrovia Centro-Atlântica, concessionária da União para realização de serviço ferroviário de cargas após a ocupação da área, em julho de 2015.

Divulgação Acervo Ocupação Cidade Locomotiva

Se a reintegração de posse já era descabida, dado que a cooperativa e a empresa não tinham a posse da área no momento da ocupação, a rápida disseminação do novo coronavírus e consequente agravamento da crise de saúde no interior do Estado de São Paulo, que tem o isolamento social como principal medida de proteção da vida, a realização de uma vistoria se tornou completamente absurda, colocando profissionais e moradores em risco. A situação se torna ainda pior em casos de ocupações urbanas e assentamentos precários que, como no caso da Cidade Locomotiva, não têm acesso a saneamento básico e têm dificuldades no acesso à água, e representa um aumento do risco de proliferação da doença e de suas consequências. Medidas como a execução de reintegrações de posse, ou mesmo vistorias, provocam agitações e aglomerações que devem ser evitados ao máximo nesse momento.

A situação delicada enfrentada por essas pessoas, se agravaria ainda mais se não tivessem um teto para morar, ao contrário do que determinam muitas decisões de reintegração de posse, inclusive em Ribeirão Preto, que justificam a medida reintegratória como meio de proteger o direito à saúde dos moradores.

A mobilização dos moradores, da UMM, da OAB/SP, de diversas outras entidades, de direitos humanos, populares e sindicais, levaram à rápida atuação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e culminou  na decisão judicial de suspensão da vistoria que estava agendada.

O caso da Cidade Locomotiva nos mostra, no entanto, que referido Provimento vem sendo descumprido. Por isso, é urgente que as/os magistradas/os, peritas/os e demais profissionais do sistema de justiça promovam de ofício a suspensão desses procedimentos que já haviam sido marcados em cada caso.

Muitas/os já se posicionaram anteriormente sobre a urgente suspensão de despejos, reintegrações de posse e outras formas judiciais ou administrativas de remoções forçadas. Aqui ampliamos esse apelo: é urgente a imediata suspensão de todos os procedimentos judiciais ou administrativos que rompam com o isolamento social e coloquem em risco a vida de famílias que moram em ocupações, favelas, cortiços e assentamentos.

* Advogado, doutorando em Planejamento Urbano e Regional na FAU-USP, militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
Mestrando em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, dirigente da Central de Movimentos Populares, advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da União dos Movimentos de Moradia de SP;
Advogada, doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela FAU-USP, pesquisadora do LabCidade e membra da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SP.