Por Raquel Rolnik

Fala-se muito sobre a necessidade de uma perspectiva feminina ou feminista e sobre a importância do olhar das mulheres para transformarmos os projetos de edificações e das cidades. Mas como mulher, arquiteta e urbanista, raramente vejo estes princípios se refletirem em exemplos concretos. O que de fato significa uma cidade inclusiva para as mulheres? Sim, existem questões óbvias como uma cidade profusamente iluminada, sem becos escuros, que ajude a transformar a experiência das mulheres nas cidades, hoje muito marcada pelo medo da violência, do assédio e do estupro. Mas, para além disto, que experiências concretas podemos ter de projetos urbanos pensados expressamente por e para as mulheres?

Refletindo essas questões, trago aqui o exemplo da cidade de Viena, na Áustria, conhecida por sua tradição, que já data de mais de um século, de produção ininterrupta de moradia popular. Aliás, esta já é em si uma perspectiva feminina: alguém já parou para pensar por que as lideranças dos movimentos de moradia pelo mundo são majoritariamente mulheres?

A capital austríaca conta hoje com um departamento de gênero dentro de sua empresa pública de produção de habitação social, que não se limita a projetos de edificações, e é responsável pelo desenho de grandes áreas de renovação ou expansão urbana. Não à toa, a cidade é pioneira em refletir sobre a questão de gênero nos projetos de moradia. Como, quando ainda em 1921, lançou o conjunto habitacional “Heimhof” que, de forma inédita, com o objetivo de diminuir a carga de trabalho doméstico, que historicamente sobrecarrega as mulheres, inseriu no desenho do conjunto habitacional cozinhas coletivas.

O projeto deu início a uma tradição que desde então procura orientar a arquitetura dos projetos habitacionais às questões e ao olhar da mulher. Um dos exemplos contemporâneos vem a partir de 1992, com a criação do Escritório da Mulher, hoje Departamento de Gênero, e responsável por lançar, no ano seguinte, uma iniciativa inédita: oito equipes lideradas exclusivamente por mulheres foram convocadas para participar de um concurso de projetos urbanos.

O concurso era para o masterplan e desenho dos edifícios para um novo bairro, o Frauen-Werk-Stadt, o primeiro distrito desenhado e construído atendendo critérios de perspectiva de gênero.

A competição lançou o desafio de elaboração de projetos de habitação pensados por uma perspectiva feminina e feminista. Entre eles, destacou-se a proposta da arquiteta Franziska Ullmann que, além de trazer elementos básicos como as creches, porém situadas no caminho de saída dos apartamentos e na direção da estrutura de transporte público, e inovou principalmente por apresentar uma preocupação em relação aos espaços externos. Na obra de Ullmann chama atenção os muitos pátios internos, criados como áreas de lazer para as crianças, localizados de modo que os pais e mães pudessem acompanhá-las de suas janelas. Uma liberdade para as crianças brincarem sozinhas, mas estando protegidas por esses olhares.

Além disto, questões simples, como ter nesses edifícios residenciais locais para guardar o carrinho do bebê, ou de feira, bicicletas e uma série de acessórios que vemos hoje atravancando corredores e apartamentos, ou mesmo mulheres tendo que se virar para carregá-los em escadas e elevadores, quando depósitos no térreo, como os projetados na experiência de Viena, resolvem facilmente a questão.

Trata-se de algo muito simples e cotidiano. São talvez estes detalhes, estes milhares de detalhes, que podem aliviar um cotidiano de sobretrabalho e jornadas duplas e triplas que, embora nem de longe superem o modelo machista patriarcal de cidades, pelo menos podem fazer deste cotidiano uma experiência menos penosa.

 

(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade