Foto: José Leomar/ SVM

Por Aluízio Marino, Raquel Rolnik e Valéria Pinheiro, com colaboração de Luiz Fábio Paiva*

O fim do motim dos policiais cearenses no dia primeiro de março deve servir como alerta para pensarmos os perigos da disseminação de um modo miliciano de governar o território e, particularmente, as cidades.

Evidentemente que o término do motim é um alívio para a população cearense que ficou refém do movimento: comércios ficaram fechados, toques de recolher e barricadas impediram a livre circulação das pessoas, sem falar da escalada de violência, com pelo menos 241 assassinatos e relatos de dezenas de desaparecidos em apenas 13 dias. Foi também um alívio para outros estados, já que a continuidade do motim cearense incentivava a deflagração de movimentos semelhantes em outras unidades da federação.

Neste momento, é necessário compreender as causas desse motim. Muito se debateu na mídia nos últimos dias a politização do movimento, tendo emergido várias interpretações, como por exemplo o fato das policias terem se tornado atores políticos com relativa independência, inclusive com sua entrada na política partidária, com policiais ocupando cargos no Executivo e no Legislativo em todas as esferas. Mas aqui trazemos um debate que ainda não foi devidamente explorado.

A forma como estão organizadas as grandes cidades brasileiras, resultado de políticas urbanas que contribuíram para produzir uma desigualdade socioterritorial e segregação racial, somada à política de segurança pública das últimas décadas, que investiu uma quantidade enorme de recursos em tecnologias de repressão e criou uma verdadeira bomba relógio. Nas cidades, boa parte dos territórios populares são perímetros onde o conjunto das políticas públicas opera de forma discricionária e errática. Estamos falando das favelas, ocupações e periferias do país, espaços que foram autoconstruídos pelos próprios moradores em condições precárias, classificados no léxico administrativo como “irregulares ou informais”. Mas incluem também os grandes conjuntos habitacionais populares construídos pelos governos e inseridos nas mesmas periferias, tratados igualmente de forma discriminatória pelas políticas públicas.

Nas últimas décadas se produziu um urbanismo militarizado, que, no mundo “formal” opera para proteger o patrimônio. Para o “resto”, leia- se, para os territórios populares, este urbanismo militarizado significa um forte aparato de violência estatal, que, aliado ao verdadeiro estado de exceção que ali impera, abre brechas para a atuação de outros grupos armados, tais como facções e milícias paramilitares, capazes de implodir o próprio Estado.

Em todo o país e há décadas, policiais fazem bicos atuando em segurança privada em seus dias de folga. Há décadas também, membros da policia estabelecem relações de colaboração com o crime organizado, protegendo ou até mesmo participando dos lucros de mercados ilícitos. 

Em estados como o Ceará e o Rio de Janeiro, chama especial atenção a forma como o poder público foi omisso na mediação de conflitos e proteção da população em lugares marcados por disputas de controle territorial. Nesses lugares existem inclusive relatos de despejos e  remoções forçadas de famílias que vivem em territórios que eram dominados por determinado grupo e que passaram para o domínio de rivais. O Estado não demonstra, até então, nenhuma ação de prevenção, nem mesmo de redução desses danos. Em Fortaleza, inclusive, há relatos de que quando o fenômeno surgiu a polícia fazia a “escolta” das famílias expulsas, que muitas vezes, iam para a rua por falta de alternativas habitacionais. A ação desses grupos armados conta, minimamente, com a conivência de parte da corporação policial. As corrupções de nível de rua (o arrego) são um tipo de mediação comum na qual o poder policial local permite a prática delinquencial em troca de propina. Por outro lado, grupos organizados e integrados muitas vezes por homens da força policial também adotam estratégias delinquenciais na formação de grupos de extermínio e milícias armadas.

Quando há uma investida por parte de um novo comando da policia, ou de uma nova política de segurança pública endurecendo e dificultando práticas de arrego e limitando as possibilidades de ganhos adicionais, isso acaba também por dividir a corporação entre os bonificados pelo novo programa e os prejudicados, privados de ganhos adicionais e das gratificações de seus colegas. Este é também um dos elementos presentes nos eventos recentes do Ceará.

Entretanto, o que mais assusta com o motim cearense é a evidência de uma lógica miliciana incrustada nas corporações policiais. Ilustradas nas cenas registradas durante os motins. Policias encapuzados impondo fechamento de comércios e toque de recolher; carros oficiais servindo como barreiras e barricadas; atentados e hostilização contra a população civil.

Mas o modo miliciano de governar não começou com o motim e muito menos foi encerrado com o fim do movimento. Essa lógica, que começa na configuração de um território de exceção – as favelas e periferias do país, passa pela lógica da condominialização e a segurança privada armada, passa pela corrupção em nível local (arregos), chegando até a organização de grupos de extermínio e exércitos privados. Quando esses se lançam no mercado de votos como atores políticos, então estamos diante de uma reconfiguração não apenas da segurança mas do modo de governar o território.

*Doutorando na UFABC, pesquisador do Labcidade; professora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade; pesquisadora do LEHAB UFC, da rede Observatório das Metrópoles e Observatório de Remoções; professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC (LEV UFC). Texto publicado originalmente no UOL.