magem retirada do documentário LIBERDADE / Créditos: Pedro Nishi e Vinícius Silva

Por Marcio Farias*

Ainda que seja autor de muitos temas, “Labirinto da Solidão” foi o grande ato do poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano Octavio Paz. Ao tentar situar o espírito mexicano no mundo moderno, encontrou dilemas universais. Os ensaios que compõem essa obra tratam da dialética entre a solidão e a comunhão: “Mais vasta e profunda que o sentimento de inferioridade, porém, é a solidão. As duas atitudes não podem ser identificadas: sentir-se só não é sentir inferior, mais diferente. O sentimento de solidão, por outro lado, não é uma ilusão – como às vezes é o de inferioridade –, mas expressão de um fato real, somos de fato, diferentes. E, de fato, estamos sozinhos” (PAZ, p. 21, 2014).

A relação entre inferioridade e diferença aqui não é a do atributo da diferença e reconhecimento, tão festejados pelas correntes contemporâneas do pensamento. Na verdade, é a universalidade concreta e cotidiana do tal “devir negro do mundo”, como diz Achille Mbembe (Crítica da Razão Negra, 2018), em primeira pessoa. Não conheço analogias mais pertinentes para o que, possivelmente, se apresenta como dilema no trato da mobilidade humana contemporânea.

De certo, toda a análise sobre algum aspecto da vida em sociedade diante da atual pandemia está sob o risco de um retundo fracasso. O nível de imprevisibilidade e indeterminação da conjuntura é grande. Com ares de enredo de algum romance de José Saramago, a vida em tempos de pandemia da COVID-19 é marcada pela incerteza. Do mês de março, quando dos primeiros casos no Brasil, até o final do mês de maio, os níveis de mudanças de orientações dos agentes públicos responsáveis – ou a falta delas – e de hábitos foram intensos.

Lá no começo, no pretérito imperfeito da situação, duas assertivas se tornaram consensuais entre importantes interlocutores públicos e formadores de opinião. De um lado, falava-se sobre o caráter democrático da doença. De outro, que o Brasil pagaria muito caro pela tamanha desigualdade entre as classes sociais. Sobre a primeira, faltou adjetiva-la: democracia burguesa, ou seja, formal na letra, desigual e injusta na prática. Já a segunda é mais factual, embora parcial. A desigualdade social no Brasil é um tropo para classe trabalhadora pauperizada, em sua maioria negra. Essa contradição em termos sobre a COVID-19 é bastante reveladora sobre os quadros da inteligência pública no tocante aos males de origem da nação: ainda que se tente afirmar uma sociedade harmônica no campo simbólico, sabe-se das raízes de nossos problemas estruturais.

Nesse ponto, uma chave de interpretação sobre o atual estágio e condições de vida dos imigrantes haitianos e advindos dos mais variados países africanos, formando o que chamaremos neste ensaio de imigrantes negros, pode estar naquilo que estudos e pesquisas recentes sobre o tema vinham apontando, mas agora em uma escala maior, intensificada. Ou seja, guarda suas semelhanças e diferenças em relação às primeiras análises públicas sobre o novo e tenebroso cenário: ainda que se tente igualar, por baixo, a situação do imigrante com as demais frações da classe trabalhadora tipicamente superexplorada no país, esse grupo social está vivendo esse período de uma maneira mais injusta e desprotegida. Estão sós, naquilo tipo de solidão melancólica. E o pior de tudo isso, sabemos e nos calamos.

Imagem retirada do documentário LIBERDADE / Créditos: Pedro Nishi e Vinícius Silva[3]

Solidão vivenciada por esses homens e mulheres na complexa teia cotidiana em que “(…) ao fazerem a sua própria história, não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”[Karl Marx, O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte] Por isso, na época em que defendi a dissertação “Relatos de imigrantes africanos sobre preconceito na cidade de São Paulo”[Relatos de imigrantes africanos sobre preconceito na cidade de  São Paulo, dissertação (Mestrado em Psicologia Social), PUCSP, 2015] indiquei que o fluxo migratório contemporâneo de africanos ao Brasil, especialmente em São Paulo, vinha consolidando novas veredas das relações raciais. E essa afirmação se dava tanto pelo resultado do campo de minha pesquisa, como pela revisão bibliográfica.

Os motivos são vários. Cito três: 1) As condições em que a maioria dos imigrantes negros se inserem no mercado de trabalho, via de regra, informal e, quando formalizados, precarizados; 2) A consciência entre o ser negro e o ser africano: a vivência cotidiana do ser negro brasileiro e a do ser negro do imigrante contemporâneo são iguais e diferentes; 3) Mito fundante e as contradições da vida concreta: a imigração negra contemporânea é uma espécie de “vingança da história às avessas” ou um “retorno do recalcado”. Volta concreta daquele sujeito que a história brasileira tentou negar. A lenda encantada da modernidade brasileira, baseada no mito do encontro harmônico entre as três raças fundadoras, num equilíbrio de antagonismos, lastreado pela cultura negra como pilar da nossa formação. Mas, como todo herói nacional, deve dar a vida pela nação. O negro tem de estar morto, para a emergência da cultura negra nacional.

Tateando uma aproximação entre essas dimensões apontadas, o caso João Manoel é emblemático: trabalhador frentista, oriundo de Angola, morto em maio por conta de uma discussão em que seu agressor questionava o fato dos imigrantes receberem o auxilio emergencial federal (o ataque gerou a #CampanhaSomosJoãoManuel, que busca fortalecer a rede de solidariedade e apoiar famílias imigrantes). Dolorido exemplo da solidão da imigração negra. O imigrante “busca a liberdade de vender a sua força de trabalho”, nos lembra Jean Paul Guademar. Ser força de trabalho sob a égide do capital é estar estranhado, cindido daquilo que produz, divorciado da sua condição enquanto ser genérico, distante de si próprio e em relação ao outro, seu potencial oponente. O estranhamento do trabalho tem no racismo uma de suas principais concretizações. No caso da imigração negra, esse estranhamento vilipendiado é a última instância do drama humano contemporâneo. Ainda que vivenciem o racismo estrutural, estejam inseridos, em sua grande maioria enquanto trabalhadores informais ou precários, os imigrantes negros vivem especificidades e não necessariamente encontram solidariedade e a partilha do comum com seus possíveis pares nativos. Trata-se de um novo aspecto das antigas relações raciais no Brasil. São sujeitos concretos desse novo cenário, carregado de velhos problemas.

Em sua marcha da solidão, ao saírem de seus lugares de origem, tornam-se africanos. Tornam-se negros na sequência, mas sem deixar de serem africanos. Negro africano. Trabalhador negro africano no Brasil.

Não há condições, neste breve ensaio, de nos dedicarmos aos aspectos acima elencados de maneira mais detida e apurada, nem discorrer sobre outras determinações que incidem sobre a condição da imigração negra contemporânea no Brasil.

Todas essas questões colocam os imigrantes africanos no Brasil como agentes fundamentais da história. Podem ajudar tanto ao movimento negro brasileiro a qualificar sua luta, como os mais variados setores que precisam entender quais são as relações entre Brasil e África, do ponto de vista histórico e contemporâneo. Sobretudo diante de uma quadra histórica de implantação da lei que tornou obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nos currículos de ensino fundamental e médio. A “África mítica” perde lugar para necessidade de análises mais apuradas sobre a história do continente africano e os imigrantes africanos no Brasil podem contribuir bastante nesse processo. E podem contribuir na medida em que forem convocados a discutir com o conjunto da sociedade brasileira os rumos do continente no século XXI. Ainda mais quando pensamos um momento de relações internacionais forjadas em blocos políticos e econômicos que se estruturam diante da mundialização do capital para resguardarem as economias nacionais.

Mais do que isso, para pensar a condição migrante é preciso enxergá-los, identificar suas diversidades internas e demandas, conhecer suas experiências de vida, seus anseios quando migram e suas lutas, suas agruras, fomentar o surgimento e divulgar os grupos existentes, conhecer seus trabalhos e condições, como também a vida familiar e suas aspirações. Em suma, é preciso superar e não mais promover a solidão desses grupos. Em tempos de pandemia esse é o maior dos desafios.

*Marcio Farias é doutorando em Psicologia Social, PUC-SP, membro do Nutas (Núcleo de Estudos de Trabalho e Ação Social) PUC-SP, professor convidado do Celacc-ECA/USP e integrante do NEPAFRO. Texto publicado originalmente no blog do Museu da Imigração na seção “Mobilidade Humana e Coronavírus”, uma série de publicações que busca em análises de pesquisadores e depoimentos de migrantes abrir um debate sobre o que está sendo, e o que poderá ser da mobilidade humana em nossas sociedades. As contribuições podem ser acessadas aqui.