licitacao onibus
Foto: Finasal /Wikimedia Commons

Por Marcia Gregori* e Rafael Drummond**

O transporte coletivo de ônibus é responsável pela mobilidade de cerca de 6 milhões de passageiros diariamente em São Paulo, o metrô responde por mais cerca de 2 milhões. O edital de licitação da concessão dos ônibus, que terminou em 2013 após 10 anos, foi lançado no dia 25 de outubro e apresenta questões complicadas para o interesse público e já apontadas por vários coletivos antes mesmo do seu anúncio. No entanto, a mídia, o Ministério Público e a Prefeitura parecem preferir abordar assuntos que, embora tenham sua importância na discussão sobre a mobilidade na cidade, não são estruturais nem respondem por números e cifras tão elevados quanto o sistema de ônibus.

A Prefeitura, por um lado, mais confunde do que esclarece. Lança notas pouco claras a respeito da remuneração dos ônibus, do índice de qualidade e da produtividade, com um discurso técnico pouco compreensível para a grande maioria da população. Além disso, após a consulta pública, não incluiu no edital diversas sugestões feitas por várias entidades em pontos centrais, mas incluiu demandas dos empresários quanto à remuneração dos serviços, agora em retificação publicada no Diário Oficial do Município, aceitando pagar 15% dos custos operacionais, ainda que a prestação não seja feita de acordo com o contrato.

(Confira em breve aqui no blog mais um artigo sobre outras sugestões que não foram acatadas pela Prefeitura no processo de consulta pública.)

Já o Ministério Público está muito preocupado com a abertura da Avenida Paulista para pedestres aos domingos, mas pelo visto não se incomodou com a duração de 20 anos prorrogáveis por mais 20 do edital dos ônibus; ou com a operação do Centro de Controle Operacional (CCO) do sistema; nem com a paralisação das obras do metrô e do monotrilho.

A mídia, por sua vez, discute e desqualifica as ciclovias, ecoa reclamações sobre o lazer na Paulista aos domingos, mas não procura se aprofundar em questões centrais dessa licitação, ou em outros temas relevantes para a cidade, como a água e o fechamento das escolas públicas estaduais. Seria talvez por que o transporte coletivo e os serviços públicos em geral são prestados a pessoas mais pobres, que estão na periferia da sociedade e não no coração da cidade com seus imensos automóveis? Ou porque o lucro, escamoteado por um discurso tecnocrático, está acima de qualquer coisa na sua escala de valores?

A licitação agora aberta poderia ser uma oportunidade de conquistar não apenas um serviço de alta qualidade, mas também de atrair novos usuários ao sistema de ônibus, que abandonariam o individualismo do automóvel. Mas para isso seria necessário um modelo que não estivesse fundado essencialmente em ideias como Estado eficiente e lucro garantido para os empresários e muito menos em parcerias público-privadas nas quais o poder público serve cada vez mais para viabilizar o grande capital e não se responsabiliza por cobrar e garantir a qualidade dos serviços ou por estabelecer ao menos um pouco de justiça social.

Em um processo de consulta pública apressada, houve diversas propostas e questionamentos e, ao final de dois meses, após o fechamento da consulta, foram dadas as respostas à participação pública e o edital final foi publicado no Diário Oficial do Município.

Entre as propostas que o GT Mobilidade da Rede Butantã e o APĒ – estudos em mobilidade fizeram à Secretaria Municipal de Transportes, duas são, em nosso entendimento, fundamentais para o sucesso do novo sistema proposto: 1. A diminuição da duração dos contratos; 2. A construção e operação do Centro de Controle Operacional (CCO) serem objeto de outra licitação da qual os empresários prestadores do serviço de ônibus não possam participar.

Essas duas questões estão muito ligadas, pois como o CCO é um bem reversível, ou seja, será passado à Prefeitura ao final do contrato, ele demanda um prazo extenso para justificar o investimento, diferentemente dos veículos da operação do serviço que podem ser revendidos ao final de seus prazos máximos de vida útil.

Mas o poder público municipal justifica, burocraticamente, a duração dos contratos dizendo que o edital respeita a determinação do Decreto 56.232/2015, assinado pelo prefeito Fernando Haddad em julho de 2015, segundo o qual os contratos serão de 20 anos, renováveis por mais 20. Neste caso, como propusemos em reuniões e também em documentos protocolados antes da publicação do edital, seria necessário e perfeitamente possível que o prefeito fizesse um segundo decreto alterando esse prazo, o que infelizmente não aconteceu. Simples assim.

É absurdo pensar que a cidade terá as mesmas prestadoras de um serviço essencial para a população por 20 anos, e quem sabe até por 40! O tempo da cidade, como todos nós sabemos, é outro. Há dinâmicas sociais muito mais aceleradas e o capital tem se mostrado muito ágil quando se trata de comprar, demolir e construir edifícios para as camadas média e rica da população, “renovando” e definindo outro perfil socioeconômico para algumas localidades. A cidade não fica do mesmo jeito por dois anos, que dirá por 20 ou 40.

Para colocar o prazo da concessão em perspectiva, podemos usar a cidade de Londres como exemplo. Para garantir no processo de licitação uma concorrência entre empresas que ofertem o menor valor possível, o poder público da cidade inglesa faz uma licitação para cada linha ou conjunto de linhas e os contratos duram de 5 a 7 anos no máximo. Dessa forma, 15 a 20% das linhas são licitadas a cada ano, o que permite a constante adaptação às alterações da cidade e impede que haja um monopólio natural tão consolidado como o que ocorre aqui no Brasil. Assim, as empresas precisam, constantemente, ofertar valores justos e qualidade no serviço para não perder a concessão.

Com relação ao CCO, a Prefeitura de São Paulo abdicou de ocupar uma função que ela mesma planejava realizar desde 2013. O Centro de Controle foi idealizado dentro da Operação Controlada que começou a ser instalada como projeto-piloto na rede de ônibus da madrugada e, segundo a própria Prefeitura, tem sido um grande sucesso, sem que as concessionárias tenham qualquer influência sobre seu controle operacional. Isso tem garantido ótima qualidade e boa frequência desse serviço, tão postergado e necessário. Não é possível entender por que, no momento em que tal projeto está finalmente sendo implementado, a SPTrans argumenta que não tem capacidade técnica e financeira para estender a operação a todo o sistema e que somente as empresas operadoras podem fazer este serviço, sem que nem mesmo haja a possibilidade de uma operadora externa, contratada exclusivamente para esse fim, realizá-lo.

A Prefeitura, ao tomar esta medida, ignora a importância que o CCO terá no transporte público da cidade e cria um conflito de interesse, pois permite que as concessionárias tenham ingerência sobre dados e ações que afetam diretamente o planejamento das rotas e horários das operações e, a priori, a própria remuneração dos serviços de ônibus que será prestado pelas mesmas empresas. O poder de veto e de regulação da SPTrans pode não ser suficiente para manter o interesse público intacto. Essa preocupação foi levada ao corpo técnico da Prefeitura em algumas reuniões e por meio da consulta pública, mas eles preferiram manter tudo como foi proposto originalmente no edital.

O exemplo londrino também é importante neste caso, pois é o poder público local que estipula os parâmetros mínimos de qualidade e todo o planejamento de rotas e frequências. E tanto os terminais e os pontos de parada, como o Centro de Controle, são da autoridade pública. Além disso, há também a presença do London Travel Watch, que representa a população no monitoramento do sistema de transporte público da capital inglesa, o que garante um maior controle público sobre tal atividade, que é tão importante a todos na cidade.

Em São Paulo, a imprensa limita-se a veicular as confusas notas da Prefeitura, que ora salientam um aspecto, ora outro, deixando pouco claros os pontos verdadeiramente importantes do edital. Parece também que há uma notável habilidade do prefeito em lançar fatos polêmicos, bem ao gosto da mídia, que provoquem discussões esparsas, como cortina de fumaça, obscurecendo o debate dos temas essenciais.

Enquanto isso, os mais vulneráveis veem-se constantemente jogados cada vez mais para fora das áreas bem equipadas e os serviços que os atendem são de baixa qualidade e dominados por poucos empresários que buscam alcançar lucros altíssimos. É nesse sentido que a mobilidade pode se tornar instrumento fundamental para o uso democrático da cidade. Como a grande mídia pode continuar ignorando tal situação?

O transporte público coletivo, inclusive o metrô e o monotrilho, não parece tão importante quanto viabilizar o tráfego dos automóveis aos domingos na Paulista, a velocidade máxima permitida nas marginais ou o desenho planejado das ciclovias, isso para falar apenas da mobilidade.

Assim, o quase total silêncio da imprensa, o descaso do Ministério Público e a ambiguidade da Prefeitura acabam por ser uma combinação perigosa. Os reflexos do “descuido” sobre o assunto poderão ser extremamente maléficos para a cidade e os problemas que levaram a população às ruas em 2013 podem se perpetuar.

*Marcia Gregori é arquiteta e urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, com mestrado pela mesma instituição. Atualmente é conselheira participativa pelo Butantã, membro do GT Mobilidade da Rede Butantã e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

**Rafael Drummond é jornalista formado pela UNESP de Bauru e planejador urbano pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Atualmente é membro do APĒ – estudos em mobilidade e participa do GT Mobilidade da Rede Butantã.