* Por Paula Freire Santoro

IBDU/Divulgação
A Revista Brasileira de Direito Urbanístico lança na próxima segunda-feira (28), às 19h, no canal do IBDU no YouTube, o Dossiê ZEIS, que reúne pesquisas sobre a trajetória de mais de quatro décadas das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)

Será nesta segunda, 28 de agosto, o webinário de lançamento do “Dossiê ZEIS” da Revista Brasileira de Direito Urbanístico, coordenado, dentre outros, por mim, Paula Freire Santoro, juntamente com Adriana Nogueira Vieira Lima, Hanna Cláudia Freitas Rodrigues, Lígia Maria Silva Melo de Casimiro, Mariana Levy Piza Fontes e Paulo Somlanyi Romeiro. Escrevemos a várias mãos o texto de introdução e aqui dou pequenos spoilers para que se animem a vir para o debate com convidados, que se dará no canal @ibdu_oficial no YouTube, às 19h. Venham!

Clique aqui para acessar a Edição Especial da Revista Brasileira de Direito Urbanístico – Dossiê ZEIS.

O dossiê quer recuperar a trajetória de mais de quatro décadas desde a formulação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), no final da década de 1970, como instrumento que reconheceria áreas já ocupadas por população de baixa renda, dando garantia da posse, permanência, gestando sua urbanização e integração à cidade. As ZEIS também foram demarcadas sobre áreas subutilizadas ou consideradas “vazias”, com o objetivo de combater a especulação imobiliária e dar um uso, principalmente sobre propriedades ociosas em áreas bem localizadas, pressionando para serem transformadas em moradia popular.

O tempo mostrou que foram escolhidas para a proteção de territórios tradicionais por considerarem as especificidades destes modos de habitar e reconhecerem a produção social do espaço e o pluralismo nas formas de usar e ocupar o território. Sua gestão democrática foi concebida para se dar em conselhos de ZEIS que planejaram e fariam a gestão dos bairros,  e formar conselhos para planejar, e não para remover, virou outro objeto de luta. As ZEIS podem contribuir para ampliação do acesso da população negra à moradia adequada e a inclusão das comunidades tradicionais, ancestrais. O debate atual sobre democratização do acesso à terra passa necessariamente pelo enfrentamento do racismo estrutural e por propostas de reparação.

Sua vasta experimentação, especialmente após a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/01), a transformou em um dos principais instrumentos de política urbana e habitacional, presente nos planos diretores e zoneamentos de milhares de cidades, lido como um “instrumento da Reforma Urbana”.

Diversos estudos e artigos foram feitos sobre ZEIS em diversas cidades brasileiras, exigindo um balanço crítico. Antes deste dossiê, por exemplo, tivemos em 2008 o livro resultante da Pesquisa Rede de Avaliação e Capacitação para a Implementação dos Planos Diretores Participativos, que avaliou mais de 500 planos municipais, com ênfase nos que previam ZEIS, mostrando sua disseminação limitada.

Em 2012, em outro exemplo, Raquel Rolnik e eu fizemos um panorama da utilização do instrumento no Brasil, mostrando que as ZEIS se disseminavam com experiências que aumentavam a oferta de terra para produção de habitação de interesse social, ajudavam na prevenção de remoções, mas que exigiam uma gestão ativa da política habitacional, além de sua combinação com programas habitacionais diversos. Também mostramos que muitas experiências produziam “mais do mesmo”, reduzindo parâmetros urbanísticos e sem garantir uma boa localização, reproduzindo o padrão de ocupação um pouco mais precário nas zonas.

Este dossiê reconhece este percurso, de luta, procurando construir uma visão crítica do instrumento, com pesquisas baseadas em dados e métodos científicos, se aproximando dos espaços que de fato as ZEIS transformaram ou provocaram a forma hegemônica de planejar as cidades e pensar o direito, e disputaram sua interpretação e transformação.

Por que lê-lo? Por muitos motivos! Elenco alguns para convidá-los a se juntarem ao webinário e conhecerem o conjunto dos artigos.

O dossiê é aberto com um artigo sobre as “Zonas de Promoción del Hábitat Social”, uma espécie de ZEIS argentinas, em artigo da Fernanda Levezon (Seção I). Sim, há instrumentos similares pela América Latina, que articulam política urbana com habitacional, mas não iguais. Faltou um sobre a Colômbia, muito estudada em relação ao Brasil. Quem sabe não vem em forma de artigo nas próximas revistas?

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Em seguida, vem um bloco de textos que recuperam as “Disputas em torno dos sentidos e da apropriação das ZEIS” (Seção II). As narrativas mostram que os instrumentos não são neutros e que podem ser apropriados por distintos grupos sociais. E, diferentemente da tese simplificadora de que há uma cooptação dos instrumentos pelo mercado imobiliário financeirizado, mostram que as ZEIS foram disputadas pelos movimentos sociais desde o processo de democratização no país, e sua gestão reuatravés de políticas habitacionais esteve associada a gestões públicas progressistas que incorporaram processos de capacitação e construção democrática, bem como instituições participativas como conselhos, etc.

E mostram também, claro, que as ZEIS são disputadas pelo mercado imobiliário financeirizado que enxerga como reserva de terra, de valor, e que as formas como este se apropria das ZEIS também precisam ser compreendidas. Elas podem se dar através da flexibilização da regulação dos parâmetros de uso e ocupação do solo, tornando-as de interesse para as morfologias produzidas pelo mercado. Ou através de megaeventos esportivos cujas infraestruturas incidem sobre as áreas mais pobres, frequentemente ameaçadas e removidas. Ou ainda em uma combinação perversa entre poder público e iniciativa privada em parcerias público-privadas, em tese de interesse público, mas que, na prática, terminam ameaçando a permanência de quem mora e vive nas áreas que são frente à expansão destes capitais.

Ainda que os textos tenham um tom crítico, nem tudo é destruição. Vários apresentam as ZEIS como instrumento de luta, de resistência pela permanência, mas também de articulação social e proposição, através de planos urbanos alternativos, que tentam traduzir utopias em alternativas que sinalizam que é possível transformar com inclusão.

Um dos textos – e as autoras estarão apresentando no webinário, trazendo questões regulatórias e teóricas importantes – cito aqui. O artigo sobre as “Zonas Especiais de Interesse Social: novas fronteiras de acumulação urbana?”, de Norma Lacerda Gonçalves e Fernanda Carolina Costa, parte da apropriação das áreas de ZEIS pelo mercado a partir da própria regulação de parâmetros para a zona. Seriam zonas que respeitam os parâmetros de urbanização existentes, no entanto, não são zonas sem regulação. Sobre elas incidem parâmetros que evitam coeficientes de aproveitamento altos, remembramento de lote, mudança de uso para alguns mais rentáveis, mantendo o interesse social e visando impedir a troca de morfologias e tipologias existentes, por outras de interesse do mercado imobiliário.

A pressão pela flexibilização de parâmetros se dá mais intensamente sobre ZEIS localizadas em áreas infraestruturadas ou de expansão do mercado imobiliário; ou em áreas das tragédias, de risco, que são vistas como uma oportunidade de “terra arrasar” a ocupação. O artigo faz emergir os desafios da qualificação da área acompanhada da manutenção destas como reserva de terra às avessas, para os mais pobres.

É um dos artigos que mais mobilizou diálogo com a teoria. Destaca-se especialmente a discussão em torno da ideia dos “regimes de desapropriação”, de Michael Levien (2014), que revê a “acumulação por despossessão” de David Harvey (então traduzida como “acumulação por desapropriação”), como ponto de partida para repensar estudos sobre a “tomada de terras” no país. Segundo as autoras, “um regime de desapropriação representa um meio institucionalizado para expropriar ativos dos seus donos ou usuários atuais. Ele apresenta dois componentes essenciais: um estado disposto a desapropriar em nome de um conjunto específico de propósitos econômicos vinculados a interesses de classe específicos e um meio de gerar consentimento a essa desapropriação”. Leiam que vai dar um excelente debate.

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Abrindo o segundo bloco de textos intitulado “Panorama nacional e nos municípios” inicia-se com uma cartografia do panorama nacional que será apresentada no webinário. Nela, Kazuo Nakano, Bárbara Montalva, Henry Maru e Juan Guimarães mostraram a evolução da incorporação do instrumento nos municípios brasileiros – 58,4% declararam ter ZEIS instituída em 2021 – ainda que os programas habitacionais não acompanhem este avanço. Leituras deste texto levantaram a hipótese de que ele aponta os efeitos da aprovação da Lei de REURB (Regularização Fundiária Urbana), Lei Federal n. 13.465 de 2017, – que desconsidera a necessidade de ser ZEIS para titular a precariedade – ao identificar uma diminuição do ritmo de incorporação do instrumento nos municípios. Ele deve ser apresentado no webinário.

Na sequência, um bloco de artigos traz panoramas das trajetórias dos instrumentos nos municípios, em textos que fazem uma reconstituição histórica da regulação, gestão e implementação dos instrumentos. São panoramas de casos emblemáticos de Natal (RN), Fortaleza (CE), Recife (PE), Rio de Janeiro, Salvador (BA), Santo André (SP) e São Paulo (SP). Alguns deles serão apresentados no webinário pelos autores, trazendo diversidade regional.

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Outro bloco de textos, o terceiro, aponta os “Desafios de gestão e implementação” através de pesquisas empíricas, cartográficas e analíticas sobre os desafios, de várias ordens, frente ao processo de gestão e concretização do instrumento pelos municípios. Agrega artigos em torno dos desafios urbanos, por exemplo, com relação com a proximidade dos núcleos aos equipamentos públicos; a criação de alternativas às ZEIS, atraindo a produção imobiliária para fora delas; são prospectivos, estudando o que ZEIS poderia ter produzido se fosse apropriada pelos movimentos sociais e pela gestão pública; entre outros. São vários os artigos interessantes, comento alguns que serão apresentados no webinário.

Inicia com o artigo que relaciona ZEIS e REURB, de Clarissa Freitas, Guilherme Barbosa e Harley de Carvalho, que será apresentado no webinário.

Eles argumentam que a articulação entre os dois instrumentos inaugura uma espécie de “novo ciclo” de produção de normas e instituições urbanísticas após 2010. Retoma as ideias de Hernando de Soto, como teoria que estrutura os defensores de teses liberais em âmbito econômico e fundiário, que apostam na formalização da propriedade para a inclusão econômica dos moradores de áreas regularizadas. E perguntam: como os juristas devem interpretar os instrumentos consolidados a partir destas teses? Dissertam sobre as (im)possibilidades de conciliação entre os instrumentos, concluindo que a REURB deve ser entendida como instrumento para facilitar a implementação das ZEIS e não como seu substituto.

Também será apresentado no webinário o artigo “O papel das Zonas Especiais de Interesse Social de imóveis vazios ou subutilizados para a produção habitacional privada: reflexões a partir da produção na Zona Leste do município de São Paulo”, de Rosana Yamaguti e Rosana Denaldi que vão apresentar, – a partir do mapeamento inovador dos empreendimentos licenciados pelo poder público em ZEIS e fora de ZEIS de imóveis vazios ou subutilizados –, a produção habitacional de mercado popular e habitação de interesse social na Zona Leste em São Paulo, entre 2002 e 2017. Apontam as estratégias da iniciativa privada para viabilização da produção nestas ZEIS – como um maior porte dos empreendimentos, a incorporação de outros usos residenciais e não residenciais e a redução da área das unidades.

Relativizam o instrumento, mostrando os efeitos de incentivos alternativos, como decretos municipais que replicam estímulos de ZEIS para fora delas, dispersando a produção imobiliária que se utiliza destes. Concluem que a produção realizada nessas áreas, em geral, não foi voltada ao atendimento da demanda prioritária do déficit habitacional, e que o poder público produziu pouco, mas seria ele o responsável por moradias que parecem mais acessíveis ao quadro de necessidades habitacionais de São Paulo. Certamente uma experiência importante para outros municípios que pensam na articulação das ZEIS com o cumprimento da função social da propriedade.

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E para fechar, mantendo a tradição da Revista, é publicada uma nota técnica intitulada “Conselho gestor das Zonas Especiais de Interesse Social em São Paulo: o caso da comunidade Futuro Melhor, Zona Norte” escrita por mim, Paula Freire Santoro, e Débora Ungaretti, ambas do LabCidade FAUUSP; Taíssa Nunes Vieira Pinheiro, Allan Ramalho Ferreira, Pedro Ribeiro Agustoni Feilke os três do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por onde saiu a nota; e Vitor Rodrigues Inglez de Souza do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

De interesse amplo, o documento faz uma recuperação das ZEIS no país e em São Paulo, para argumentar que ZEIS é um instrumento que exige um plano de urbanização elaborado com a comunidade afetada e que instrumentos, como a Parceria Público-Privada Habitacional Municipal, a PPP Casa da Família, não podem ignorar estas características e implantar um projeto de cima para baixo que remove os moradores e constrói novas unidades a preços não acessíveis, sem garantir o processo democrático participativo e a permanência das famílias das ZEIS. A nota tem servido como objeto de luta na direção da retirada da comunidade do escopo de áreas afetadas pela PPP Habitacional e pela continuidade do processo de REURB na região.

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O dossiê fez uma revisão histórica analítica do instrumento, mas deixa ainda perguntas no ar, suscitando novos trabalhos e caminhos ainda a percorrer para a compreensão da importância deste instrumento para a garantia de direitos e para a luta por moradia e pela cidade. Seus sentidos seguem em disputa! Conhecê-los é inteirar-se dos argumentos e narrativas em torno destas disputas. Participem!

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SUMÁRIO DA PUBLICAÇÃO

ARTIGO INTERNACIONAL
SEÇÃO I – ARTIGO INTERNACIONAL

Zonas de Promoción del Hábitat Social: avances y potencialidades en Argentina
Fernanda Levenzon

SEÇÃO II – DISPUTAS EM TORNO DOS SENTIDOS E DA APROPRIAÇÃO DAS ZEIS

Zonas Especiais de Interesse Social: novas fronteiras de acumulação urbana?
Norma Lacerda Gonçalves, Fernanda Carolina Costa

Implantação das Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza: entre retrocessos e desafios
Renato Pequeno

As ZEIS como nova fronteira do capital: os artifícios da revitalização, a financeirização e o processo de gentrificação na região da Luz, em São Paulo
Ana Clara de Almeida Pimenta, Júlio Cesar Donadone

SEÇÃO III – PANORAMA NACIONAL E NOS MUNICÍPIOS

Panorama nacional de instituição da Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) em municípios brasileiros: disseminação com baixa implementação
Anderson Kazuo Nakano, Henry Tomio Krenski Maru, Bárbara Helena da Silva Montalva, Juan Rodrigues Guimarães

Zonas especiais de conflitos urbanos: a disputa e a descaracterização das Zonas Especiais de Interesse Social em Salvador, Fortaleza, Recife e Natal
Antonio Celestino da Silva Neto, Ariana Ferreira de Alencar Moraes, Gilson Santiago Macedo Júnior, Lara Paula de Meneses Costa, Pedro Levi Lima Oliveira

A importância das Zonas Especiais de Interesse Social para a inserção urbana da população em situação de pobreza no Recife
Demóstenes Andrade de Moraes

As Zonas Especiais de Interesse Social no município de Santo André e as ações de urbanização e regularização de favelas
Rosana Denaldi, Guadalupe Maria Jungers Abib de Almeida, Juliana Veshagem Quarenta

As Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) no município do Rio de Janeiro: trajetória do instrumento e seu papel nas políticas habitacionais
Luciana Alencar Ximenes, Rosangela Marina Luft

Áreas Especiais de Interesse Social: trajetória e perspectivas para a efetivação de direitos na cidade de Natal/RN
Maria Dulce Picanço Bentes Sobrinha, Sarah de Andrade e Andrade, Cicero Wildemberg Matias Gomes

SEÇÃO IV – DESAFIOS DE IMPLEMENTAÇÃO

ZEIS e REURB no município de Fortaleza: instrumentos complementares ou caminhos divergentes?
Clarissa Figueiredo Sampaio Freitas, Guilherme Bezerra Barbosa, Harley Sousa de Carvalho

O papel das Zonas Especiais de Interesse Social de imóveis vazios ou subutilizados para a produção habitacional privada: reflexões a partir da produção na Zona Leste do município de São Paulo
Rosana Yamaguti, Rosana Denaldi

Periferia e infraestrutura social – análise espacial de equipamentos urbanos em Zonas Especiais de Interesse Social: o caso de Passo Fundo, RS, Brasil
Wagner Mazetto de Oliveira, Luciana Inês Gomes Miron, Suelen Josiane Farinon

A experiência das ZEIS em Curitiba: plataforma de direitos?
Alessandro Lunelli, Simone Aparecida Polli

Zonas Especiais de Interesse Social e idiossincrasias locais: o caso de Curitiba/PR
Paulo Nascimento Neto, Ricardo Polucha

ZEIS, comportamento político “eleitoreiro” e a universalização do esgotamento sanitário no Recife
Demétrius Rodrigues de Freitas Ferreira

Conselho Gestor das Zonas Especiais de Interesse Social em São Paulo: o caso da comunidade Futuro Melhor, Zona Norte
Débora Ungaretti, Paula Freire Santoro, Allan Ramalho Ferreira, Taíssa Nunes Vieira Pinheiro, Vitor Rodrigues Inglez, Pedro Ribeiro Agustoni Feilke

(*) Paula Freire Santoro é professora doutora da FAUUSP, pesquisadora do programa sabático do IEAUSP e coordenadora do LabCidade.