Aluízio Marino, Luís Jacon, Laura Sahm Shdaior e Raquel Rolnik*

Há pelo menos três décadas, a Cracolândia persiste no centro da cidade de São Paulo, mesmo após inúmeras operações policiais, justificadas como política de guerra às drogas. Na contra mão das promessas de “acabar com a Cracolândia”, incorporadas no discurso de prefeitos e governadores ao longo dos últimos anos, o atual cenário escancara como está longe de resolver essa questão. O que se observa, na verdade, é a multiplicação das cenas de uso, hoje não apenas restritas a um local específico.

A multiplicação dos fluxos –locais de concentração dos usuários– revela como a política de guerra às drogas fracassou como resposta à complexa situação da Cracolândia. No entanto, a intervenção baseada em ações de policiamento tem sido eficiente para controlar espaços e populações, delimitando lugares que passam a ser alvo de intervenções extra-legais. 

Embora seja de conhecimento público que o uso da violência policial nunca tenha sido capaz de acabar com a Cracolândia, em 2022 a prefeitura e o governo do estado voltaram a repetir a fórmula antiga –já experimentada desde 1997 com a operação “Tolerância zero”. A partir de uma tática de dispersão, o método busca impedir que os usuários se “fixem” em um lugar, colocando-os em situação de permanente deslocamento.

A política de dispersão, iniciada no primeiro semestre deste ano, permanece e multiplica as cenas de uso, agora visíveis em diferentes pontos, com presença para bairros como Santa Efigênia, Campos Elíseos, Luz, Santa Cecília e República.

Deslocamento da Cracolândia a partir da ação da Praça Princesa Isabel. Clique na imagem para visualizar em tela cheia. Fonte: LabCidade, 2022

O discurso oficial é de que essa ação faz parte de uma operação que integra as polícias militar e civil e a guarda civil metropolitana. Batizada de “Caronte” –barqueiro da mitologia grega que atravessa as almas do mundo dos vivos para o mundo dos mortos–, a operação, atualmente na sexta fase, apresenta como objetivos o desmonte do tráfico na região e o fim da Cracolândia. 

Entretanto, os moradores do centro a apelidaram de “Operação Farsante”, já que desde seu início o que se observa é basicamente o deslocamento dos fluxos, a partir de intervenções policiais que os fazem migrar de um lugar para o outro. 

O deslocamento dos usuários tem gerado uma série de impactos, para além das pessoas em situação de rua que se tornaram alvos de violências e represálias diárias, os moradores e pequenos comerciantes desses bairros também sofrem com as consequências da Operação.

Por um lado, a presença dos fluxos gera uma série de transtornos, como barulho ao longo da madrugada, acúmulo de lixo e insegurança, impedindo a livre circulação das pessoas e forçando redução de horário e, até mesmo, o fechamento de pequenos comércios que não suportam os prejuízos imediatos.

Por outro, a presença do fluxo se torna justificativa para intervenções urbanísticas pautadas por demolições e remoções forçadas, a partir da narrativa da “renovação urbana” que implica em despejos e remoções de famílias mais pobres, residentes principalmente em pensões e ocupações de moradia. Mesmo grandes estabelecimentos comerciais também foram impactados pela política de deslocamento, inclusive duas agências bancárias na região foram fechadas, isso porque os fluxos estavam se concentrando bem em frente a elas.

O território virou um verdadeiro barril de pólvora. O constante deslocamento dos fluxos amplifica os conflitos já existentes na região. Ao longo do ano foram inúmeros os relatos de violência, tanto de assaltos e furtos praticados por parte dos usuários, como alguns comerciantes e moradores, que indignados com a situação atual, partiram para as vias de fato, expulsando usuários à força.

Os conflitos nesse pedaço da cidade têm ganhado novos contornos e situações inesperadas. Um exemplo disso aconteceu no empreendimento da Parceria Público-Privada Habitacional na Rua dos Gusmões, onde os moradores ficaram quatro dias seguidos sem energia elétrica –devido a roubo de cabos de energia– e precisaram “sequestrar” a equipe de técnicos da Enel para que o problema fosse resolvido e a energia restabelecida.

A política de dispersão também contribui com o aumento da presença de grupos de segurança privada no território. Algo que já era visível por exemplo nos quarteirões onde se localizam empreendimentos da Porto Seguro e na Rua Santa Efigênia, que concentra comércio de artigos de informática, elétrica e iluminação. Nas últimas semanas, a presença desses grupos de segurança privada é bastante visível ao longo da Avenida Duque de Caxias, formando uma espécie de “zona livre” da presença de usuários.

As intervenções mais recentes tiveram como efeito escalar a presença desses grupos, transformando a segurança e proteção em uma mercadoria cada vez mais lucrativa. Isso tem colocado um dilema para os moradores e comerciantes locais, pois aqueles que não se sujeitam a pagar pelo “serviço” ou não tem condições para, acabam vendo o fluxo se fixar na porta da sua casa. 

Ainda não está clara a relação entre as intervenções policiais e o crescimento de grupos de segurança privada controlando as ruas. Mas sabe-se que na cidade de São Paulo é uma prática antiga os policiais da ativa, reformados ou aposentados  fazerem “bicos” em equipes de segurança privada. O que é notável é que a presença dessas duas forças armadas tem modificado a cartografia da Cracolândia no território.

Uma análise das políticas realizadas nas últimas três décadas deixa evidente que o fim da Cracolândia só será possível quando mudarem radicalmente a forma como se lida com a questão. O grande problema da Cracolândia não é o crack, mas a miséria e a extrema vulnerabilidade de grande parte dos integrantes dos fluxos. Por isso não é possível acabar com a Cracolândia com intervenções policiais ou com internação em massa. Experiências internacionais baseadas em políticas de housing first (ou casa primeiro), indicam que políticas intersecretariais que garantam direitos, como moradia e trabalho, são o melhor caminho e que o enfrentamento truculento e policialesco só tende a gerar mais problemas.

Além de não acabar com a Cracolândia e seus impactos, a operação Caronte dispersa os fluxos criando novos pontos de tensão, que por sua vez potencializam um mercado privado de segurança. O movimento pode apontar para uma espécie de milicianização da região central.

É urgente, portanto, rever os caminhos adotados recentemente, não para voltar à situação anterior, mas para construir uma alternativa que só será possível quando as diferentes dimensões do problema puderem ser trabalhadas, com a participação dos atingidos (moradores, comerciantes e população em situação de rua), da rede de atenção psicossocial e de coletivos que os escutam, de perto.

* Aluízio Marino é pós doutorando pela FAUUSP e coordenador do LabCidade; Luís Jacon é estudante de Arquitetura e Urbanismo na USP e pesquisador do LabCidade; Laura Sahm Shdaior trabalha na Cracolândia e é mestre em Psicologia pelo IP USP; Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade.