Antigo hotel Lord Palace, na Rua das Palmeiras, centro de São Paulo. Fonte: Leonardo Soares/Folhapress

Por Pedro Pires e Paula Freire Santoro*

Com este texto damos início a uma série de publicações em nosso site com os artigos da equipe do LabCidade no congresso Fórum SP 21: Plano Diretor e Política Urbana de São Paulo, a ser realizado de maneira virtual entre os dias 21 e 30 de setembro de 2021. Os textos enviados ao evento foram levemente alterados para estar aqui em uma versão mais enxuta.

Na gestão do Plano Diretor Estratégico (PDE) do Município de São Paulo de 2014, a Prefeitura procurou também desenvolver vários Projetos de Intervenção Urbana (PIUs) previstos para a Macroárea de Estruturação Metropolitana, que tem como diretriz promover transformações no espaço urbano, nas condições de uso e ocupação do solo e na base econômica. Avaliações parciais de 2019 e 2020 mostraram o debate de quase 40 PIUs, alguns deles oriundos de propostas dos proprietários de glebas, através de Manifestações de Interesse Privado. Se aprovados, poderiam afetar quase 10% de toda área urbanizada da cidade.

Os PIUS são fragmentados, de distintos tamanhos e tipos, e podem ser organizados em alguns grupos:

_ PIUs de reestruturação urbana: envolvem grandes áreas e prevêem intervenções urbanas multissetoriais (habitação, mobilidade, meio ambiente, etc.), com desenhos próximos de uma operação urbana (p. ex. o PIU Arco Jurubatuba, PL 204/2018 em debate na Câmara de Vereadores);

_ PIUs de transformação de grandes glebas: geralmente de um proprietário apenas, são marcadas no zoneamento como Zonas de Ocupação Especial (ZOE);

_ PIUs de terminais urbanos: envolvem os 27 terminais de ônibus urbanos da cidade (Fonte: Santoro & Nunes, 2018; D’Almeida, 2018, 2019).

Grande parte destes PIUs foi apresentado de forma combinada com o instrumento da Área de Intervenção Urbana (AIU) para a gestão e financiamento das transformações, o que sinaliza um paulatino desinteresse no instrumento das operações urbanas.

Neste contexto, o Centro da metrópole paulista virou objeto de um PIU. Alvo de propostas de valorização imobiliária e de diversificação de uso do solo, ao menos desde o final da década de 1980, o Centro foi palco da Operação Urbana Anhangabaú (1991); de propostas de políticas de “requalificação” para a atração de novos moradores, principalmente classe média, em políticas como o ProCentro (1993) e a Operação Urbana Centro (Lei Municipal nº 12.349/1997).

Os anos 2000 foram marcados pelo retorno dos usos institucionais e da mobilização de instrumentos urbanísticos para estimular o capital privado a participar da requalificação pretendida. Exemplos desses instrumentos usados foram a transferência de potencial construtivo (TPC) de imóveis tombados; o incentivo aos usos residencial e hoteleiro pela liberação gratuita de coeficiente de aproveitamento (CA) máx. de 6 a 12; e a anulação de contrapartida financeira quando da mudança de uso e alterações construtivas. No entanto, a arrecadação da OU Centro nos seus mais de 20 anos de existência foi pequena – cerca de 87,7 milhões de reais (Gatti, 2019). Desde 2001, a OU Centro estava para ter sido revista, para se adequar aos princípios e instrumentos propostos pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001), mas não foi.

Os anos 2010 mostraram que as dinâmicas de esvaziamento das décadas anteriores se alteraram (Marques e Requena, 2013; Costa e Santoro, 2019) e as bordas do centro começam a ver crescimento nas últimas duas décadas, ainda no modelo da cidade “oca”, com o miolo perdendo população (Nakano, 2018).

O Centro segue em disputa e o PDE demarcou Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), previstas desde o PDE de 2002, bem como notificou imóveis para o cumprimento da função social da propriedade (Costa e Santoro, 2018; Brajato, 2020). Contraditoriamente, em parceria com o governo do Estado, a Prefeitura aderiu à PPP Habitacional Estadual, que procurou reestruturar quadras inteiras em Campos Elíseos, após o Projeto Nova Luz, encerrado em 2014 (Souza, 2011; Gatti, 2015; Vilella et al., 2018; Santoro et al., 2018).

Apenas mais recentemente houve um crescente interesse do mercado imobiliário na produção de habitação para famílias de renda média, imóveis com tamanhos reduzidos e preços altos no Centro da cidade (SMUL, 2018; Santoro, 2018; Otero et al., 2019), que somado às diretrizes do PDE de 2014 que permitem o adensamento populacional próximo a sistemas de mobilidade de alta e média capacidade, têm sido elementos mobilizadores da revisão da OU Centro iniciado com o PIU Setor Central.

Em 2017 a Prefeitura deu início a uma consulta pública para a criação do Projeto de Intervenção Urbana Setor Central (PIU-SCE) e da sua respectiva AIU, que deveriam substituir a OU. O projeto de lei, cuja minuta passou por revisões pontuais e por um processo rápido de audiências públicas virtuais no último ano, foi apresentado para discussão na Câmara Municipal no dia 06 de novembro de 2020 e aprovado pelo plenário em primeira votação no dia 12 de julho de 2021.

PIU Central. Fonte: Gestão Urbana

O trabalho completo a ser apresentado no Fórum SP21, fruto de uma pesquisa em curso, pretende compreender criticamente o modelo de política habitacional contido na proposta do PIU-SCE, identificando quais instrumentos urbanísticos disponibilizam incentivos urbanísticos, como foram propostos e como funcionam – se mobilizam direitos de construir, imóveis públicos ou recursos –, como e quando podem ser combinados para a promoção de soluções habitacionais e quanto dialogam com a situação habitacional encontrada na região. O método da pesquisa envolveu revisão da história das intervenções urbanas propostas para o Centro, uma leitura urbanística e habitacional da região central, além do acompanhamento do processo público de construção e debate da proposta do PIU Setor Central a partir de análise de documentos, de legislação incidente, além de matérias na mídia e redes sociais, bem como por meio do acompanhamento das reuniões ordinárias e extraordinárias da OU Centro e nas audiências públicas realizadas sobre o projeto de lei em 2020 e 2021.

A motivação deste projeto se deu no âmbito da preparação de um debate  sobre a proposta de PIU-SCE, cuja análise apontou para um possível novo modelo de parceria público-privada (PPP) em que o poder público desenhou uma combinação complexa de instrumentos urbanísticos que, se for aprovada desta forma, permitirá aquecer o mercado imobiliário, apostando na produção de habitação de interesse social pelo mercado e não através de projetos públicos. Nas palavras de um gestor público entrevistado: o objetivo é que o privado entregue unidades habitacionais prontas e nem o recurso obtido pela transformação imobiliária do PIU passe pelos fundos públicos. Há implícito neste posicionamento do poder público uma reflexão sobre a dificuldade de se efetivar a construção das unidades, mesmo tendo recursos e imóveis para isso, como se dá em algumas operações urbanas em curso (Fonte: Santoro et al., 2018). Será este o modelo desenhado pela proposta do PIU-SCE atualmente em debate?

*Professora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade; graduando em Arquitetura e Urbanismo na FAU-USP e pesquisador do LabCidade.

Referências

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COSTA, F. C.; SANTORO, P. F. O processo de implementação do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios: o caso dos imóveis não utilizados nos Distritos Centrais de São Paulo (SP). Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 21, n. 1, p. 63-79, 2019.

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_____. Entre a permanência e o deslocamento. ZEIS 3 como instrumento para a manutenção da população de baixa renda em áreas centrais. O caso da ZEIS 3 C 016 (Sé) inserida no perímetro do Projeto Nova Luz. Tese (Doutorado) –  Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.  Universidade de São Paulo (USP).  São Paulo, 2015.

MARQUES, E; REQUENA, C. O Centro voltou a crescer? Trajetórias demográficas diversas e heterogeneidade na São Paulo dos anos 2000. Novos estudos CEBRAP, n. 95, São Paulo, 2013.

NAKANO, Anderson Kazuo. A produção da “cidade oca” nos padrões recentes de verticalização e adensamento construtivo do município de São Paulo/The production of a “hollow city” in the recent patterns of verticalization and constructive densification of São Paulo municipality. Oculum Ensaios, v. 15, n. 1, p. 33-50, 2018.

SANTORO, P. F.; LIMA, P. H. B. M.; MENDONÇA, P. H. R. Parcerias público-privadas e habitação social: vínculos perversos, in: Rolnik, R. et al. (Eds) Cidade Estado capital: reestruturação urbana e resistências em Belo Horizonte, Fortaleza e São Paulo (São Paulo: LabCidade FAUUSP), 2018.

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SOUZA, Felipe Francisco de. A batalha pelo centro de São Paulo: Santa Ifigênia, concessão urbanística e Projeto Nova Luz. São Paulo: Paulo’s Editora, 2011.

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