Condomínio da CDHU (Omar Paixão/EXAME.com/.

 

Por Guilherme Lobo e Débora Ungaretti*

Contratos de financiamento da empresa estadual de habitação CDHU não se adequam às instabilidades sociais vividas pelos mutuários – e especialmente das famílias mais socialmente vulneráveis, como as chefiadas por mulheres – antes e durante a pandemia, provocando ameaças e despejos  

Jane

    Jane (nome fictício) vive há 23 anos em um apartamento no extremo Oeste de São Paulo, hoje com dois filhos e uma neta. Antes, dividia com seu marido e três filhos um único quarto em uma casa de parentes na Brasilândia, onde, conta, a chuva invadia com frequência por conta da estrutura precária do telhado. Em 1998, recebeu a notícia de que sua família foi sorteada pela CDHU, e que, então, teria a oportunidade de celebrar um contrato de promessa de compra e venda de uma unidade habitacional com a Companhia. Assim foi. Grávida, com seus três filhos e marido, se mudou da Brasilândia, Zona Norte, para o Jardim Ipanema, Zona Oeste.

Hoje, em meio à maior crise econômico-sanitária da história recente do Brasil, Jane se vê na iminência de perder sua casa. De lá para cá, passou por situações difíceis que marcam inúmeras famílias das periferias: a violência doméstica, o abandono de seus filhos pelo pai (abandono parental), o encarceramento de um deles e a pobreza. Esses episódios foram sempre relacionados com a insegurança habitacional, entre dívidas e renegociações, numa jornada em que a CDHU oscilava entre símbolo de esperança e ameaça de despejo. O caso de Jane, em que diversas dificuldades pessoais levaram à ameaça, nos dá pistas de um problema maior: como as diferentes vulnerabilidades que envolvem o cotidiano do público dos programas habitacionais impactam no cumprimento dos contratos de financiamento e levam a situações de perda da moradia.

Jane na casa de parentes na Brasilândia, antes de ser sorteada pela CDHU. Acervo pessoal de Jane.

O contrato e seus percalços

    A modalidade contratual ”promessa de compra e venda”, adotada pela CDHU, é uma forma de aquisição que concede a titularidade ao morador apenas quando  o financiamento é quitado, depois de pagas todas as parcelas referentes ao valor do imóvel.

O contrato da CDHU com Jane – que é padrão para os atendidos pela Companhia – indica, em sua 25º cláusula, as situações de rescisão e retomada do imóvel. Um dos itens que embasam a rescisão prevê que, se o comprador deixar de pagar três prestações mensais consecutivas ou incidir em insolvência (quando o devedor tem prestações a cumprir superiores aos rendimentos que recebe), o contrato poderá ser rescindido. É o caso da Jane e de vários de seus vizinhos de condomínio. O que leva tantas pessoas a caírem nessa situação e consequentemente serem despejadas? A história de Jane oferece pistas.

    Até oito anos depois da mudança, sua família se manteve em dia com a CDHU, mas, em função das agressões que sofria do marido, Jane se separou, passando a cuidar das crianças sozinha. Trabalhando de cuidadora, começou a ter graves dificuldades em manter a casa. Não bastasse a violência doméstica de que foi vítima, o ex-marido não pagava a pensão que devia. Jane chegou a acioná-lo na justiça, mas conta que desde 2013 não recebe mais pagamentos. Nesse meio tempo, realizou três acordos com a CDHU, nos chamados mutirões de conciliação, promovidos pela Companhia em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Jane conta, porém, que, por conta da necessidade de alimentar seus filhos, depois de um tempo de cada um dos acordos, voltou a descumpri-los, até o ponto em que a CDHU se recusou a negociar, exigindo a reintegração de posse.

    Hoje, Jane mora com um filho e uma filha, que por sua vez também tem uma filha, cujo pai, assim como ocorreu com Jane, não paga pensão. Essa cultura de abandono parental é uma marca profunda nas periferias de São Paulo e afeta diretamente o cumprimento dos contratos dos programas habitacionais: segundo levantamento da Fundação Seade, a renda média das famílias chefiadas por mulheres em São Paulo é quase mil reais inferior a das famílias chefiadas por homens. Quando celebrado o contrato, Jane tinha três filhos e marido. Após a violência e abandono que sofreu, já com cinco filhos, não só a renda familiar caiu, como os custos de vida subiram. Com a separação, foi sobre Jane que recaiu a responsabilidade dos cuidados familiares – como geralmente ocorre com as mulheres da família -–, fazendo com que ela realizasse uma jornada no mínimo dupla que afetou seu tempo e energia de dedicação ao trabalho. Há, portanto, uma relação entre a capacidade de pagamento de Jane e a sua condição de mulher. Mais do que isso, há um impedimento do exercício do direito de morar de Jane por conta, em parte, de sua condição de mulher.

    Jane, para além dos conflitos com seu ex-cônjuge, teve que lidar com a prisão de um dos seus filhos. Outro fenômeno que atinge as periferias em massa, a prisão da juventude também produz impactos diretos na vida das mulheres da família, em especial mães e esposas. O documentário Do Lado de Fora oferece uma ilustração desse efeito: dá voz às mulheres parentes de presidiários, as quais relatam situações como o dormir na rua para conseguir visitar e as revistas íntimas violentas. A responsabilidade pela manutenção do vínculo com o filho encarcerado representa mais uma jornada na rotina de mulheres que já tem pouco tempo e condições para se dedicar ao trabalho.  A vida social e familiar nas periferias de São Paulo é permeada demais por instabilidades para dívidas de crédito de longo prazo como as da CDHU. Ainda, recai sobre as costas das mulheres uma série de encargos físicos e emocionais decorrentes da vida periférica com reflexos diretos em sua capacidade de pagamento. Em alguma medida, a CDHU considera esses percalços ao promover tais mutirões de conciliação. Mas tanto para Jane como para inúmeras inscritas no programa, não é suficiente.

    O custo da moradia gerado pelo vínculo contratual da promessa de compra e venda, ainda, afeta outras dimensões do direito à cidade, como a educação. Os dois filhos que atualmente vivem com Jane são estudantes universitários. Um, que trabalhava em lava-rápido, encontra-se desempregado, enquanto a outra representa a única fonte de renda da família atualmente, por meio de bicos de limpeza doméstica. Com a pandemia, para manter os estudos a família precisou arcar com os custos de um plano de internet, além das mensalidades da universidade, o que agravou ainda mais a dificuldade em cumprir com o acordo da CDHU.

    Em resumo, há uma profunda contradição entre o propósito institucional da Companhia – solução habitacional para baixa renda – e o meio pelo qual o persegue, meio este que produz despejos e remoções justamente sobre as famílias mais socialmente vulneráveis.

Pandemia

    Foi em meio à pandemia que Jane recebeu a notícia de que teria que deixar sua casa, após não prosperar na disputa judicial. O mandado de reintegração de posse foi expedido no fim de fevereiro, um dos momentos mais críticos de toda a crise sanitária. Com problemas respiratórios e criança em casa, teme ter que morar na rua após 23 anos de luta para cumprir o contrato. E essa é a apreensão de milhares de pessoas que hoje são ameaçadas de despejo, inclusive pela CDHU.

    São duas as formas principais de ameaça promovidas pela Companhia. Uma delas é a mobilizada contra Jane: o despejo de mutuários que não conseguiram pagar as prestações na compra de unidades habitacionais. Para evitar esse tipo de situação, o Secretário da Habitação do Estado declarou, em maio de 2020, que foram suspensas as ações de cobrança e reintegração de posse da CDHU durante a pandemia. Meses depois, contudo, ainda em pandemia, os processos voltaram a tramitar. Entramos com pedido de acesso à informação na CDHU para entender essa situação e a resposta é alarmante. Não foram suspensas as ações, como havia dito o secretário, mas sim o cumprimento coercitivo dos mandados de reintegração de posse, salvo os casos em que há justificativa e autorização. Pedimos mais detalhes, ainda sem resposta. Afinal, quais os requisitos para que se conceda a suspensão? Que justificativa e autorização? O mandado de Jane, e tantos outros, está para ser cumprido a qualquer momento. Se o desemprego, a falta de alternativa habitacional e doenças respiratórias não justificam a suspensão desses mandados, quais os parâmetros da CDHU? Ainda, a cobrança das parcelas continua ocorrendo para todos os mutuários.

No mais, a CDHU tem promovido novos mutirões de negociação para reparcelar a dívida dos moradores que deixaram de pagar a partir do início da  pandemia. Essa medida, porém, contempla apenas aqueles que estavam rigorosamente em dia com os pagamentos até dezembro de 2019. Vimos que o caso de Jane – exemplo de inúmeros outros – envolve instabilidades sociais anteriores à pandemia e, em função disto, já não conta com essa possibilidade.

    A outra forma de ação da CDHU que tem levado a ameaças de despejos é a remoção de famílias moradoras e ocupantes de terrenos onde a Companhia pretende construir empreendimentos habitacionais. Há diversas ocupações respondendo processo contra pedidos de remoção da CDHU. Nesses casos, porém, não temos notícia de ameaças iminentes durante a pandemia, como vêm ocorrendo com os despejos individuais.

    Enquanto durar o estado de emergência e calamidade pública por conta da pandemia, a CDHU deveria suspender a cobrança das parcelas de financiamento para quem necessitar  e, principalmente, suspender todos os processos de despejos e remoções.

    Em uma perspectiva de direito à cidade, as medidas também deveriam ir além: ceder as unidades habitacionais atualmente desocupadas para o acolhimento da população em situação de rua, e para pessoas que não têm condições de praticar o distanciamento social em suas moradias. Essa medida já foi recomendada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, e vai na direção das campanhas de entidades e movimentos de moradia e de direitos humanos pelo acolhimento da população em situação de rua em quartos de hotéis.

    Indo mais longe, é preciso questionar o modelo de política habitacional da CDHU para além da pandemia, a fim de amadurecer e dar visibilidade a outras formas de provisão habitacional que sejam compatíveis com as instabilidades do cotidiano do público dos programas e, principalmente, que não deixem na mão – ou na rua – justamente as famílias mais vulnerabilizadas, em grande parte chefiadas por mulheres como Jane.

*Guilherme é graduando em Direito na USP e pesquisador do LabCidade e do Observatório de Remoções; Débora é doutoranda em Planejamento Urbano e Regional na FAUUSP e pesquisadora do LabCidade e do Observatório de Remoções.