Sérgio Silva/Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos

Por Ana Lídia O. Aguiar e Benedito Roberto Barbosa*

Não é de hoje que os trabalhadores ambulantes, especialmente aqueles que atuam no “corre”, precisam lidar com as ingerências dos poderes públicos e as violências cometidas através da fiscalização e das polícias da cidade. Diante da extensiva disseminação da Covid-19, houve um aumento significativo no controle e vigilância da cidade, atuando contra os trabalhadores ambulantes a pretexto de combater a contaminação do vírus, por meio de fortes políticas repressoras e através de processos de invisibilização. Na prática, o que se observa é que o poder público tem sido o promotor e protagonista dos processos de violência contra estes trabalhadores com a ajuda de um exército de coletes laranjas – os famosos funcionários da equipe de apoio, remoção e limpeza urbana da Prefeitura de São Paulo. Está em curso mais uma cena da guerra urbana diária, patrocinada, especialmente, por agentes do Estado contra os trabalhadores ambulantes.

Os inúmeros obstáculos e os nebulosos critérios para acesso aos benefícios do auxílio emergencial – que exclui do atendimento milhares de trabalhadores e trabalhadoras, entre elas mulheres chefes de família, ambulantes e população em situação de rua – são parte dos dispositivos operantes nos desmontes dos serviços públicos, e da agenda ultraliberal em curso. Tudo isso aparece ainda sob o discurso da negação do Estado: negação de serviços do estado, dos benefícios sociais, negação da violência, negação do “lacre” etc.  Isso significa que a desigualdade social, de longa data, agora transparece na sua forma mais profunda.

As barreiras enfrentadas pelos trabalhadores para conseguirem o chamado auxílio emergencial do Governo Federal, além dos baixos valores pagos pelo programa, fizeram com que os ambulantes passassem a compor uma massa de “invisíveis” urbanos que não aparece nos registros dos poderes públicos. Os ambulantes ficaram mais de três meses sem receber as cestas básicas da prefeitura, e a alegação do programa municipal Cidade Solidária, responsável pela distribuição de cestas básicas à população em “situação de extrema vulnerabilidade”, era que não havia informações organizadas sobre os ambulantes nas subprefeituras.

Segundo a Fundação Seade (Pamplona, 2019), estima-se que, hoje, a cidade de São Paulo tem cerca de 100 mil ambulantes, um número impreciso, principalmente pela dificuldade de mapeamento da quantidade real de camelôs que não possuem registros, além do aumento expressivo do comércio informal com a atual crise de desemprego. De seu lado, a Prefeitura apresenta um número bastante inferior, estimado em 40 mil ambulantes, dos quais 18 mil estão cadastrados no programa “Tô Legal!” e entre 2 a 4 mil ambulantes possuem TPU  (Termo de Permissão de Uso). Cabe ainda registrar que os camelôs com deficiência grave que possuem o TPU tem direito a auxiliares de banca, que também são habilitados na prefeitura, mas que tampouco estão sendo atendidos pelo programa Cidade Solidária.

Tudo isso nos mostra que o que está por trás da subnotificação de dados é a realidade de milhares de trabalhadores que, com a negação dos recursos sociais, não puderam cumprir o isolamento social. Dentre eles, há uma massa de imigrantes que engrossam as fileiras dos comércios populares na cidade de São Paulo.

É nesta arena do conflito urbano que a pandemia aparece como uma oportunidade para acelerar a agenda de desmontes e de limpeza urbana, visando limpar o centro daqueles vistos como os “indesejáveis” urbanos por parte do poder público, em consonância com fortes setores privados, como é o caso, por exemplo, dos inúmeros empreendimentos novos construídos na região do Brás por um grupo de empresários e investidores (um investimento na soma de cerca de R$1,6 bilhão em patrimônio), que além de controlarem parte significativa do fluxo dos comércios na localidade, também controlam as calçadas e o espaço urbano, com seguranças particulares e sob o discurso da “revitalização urbana”, dificultando ainda mais o trabalho dos ambulantes na região. Soma-se ainda o truculento poder estatal, que além de negar auxílio e direitos, ainda age com violência sobre os corpos  a fim de obter total controle dos espaços da cidade.

Desde o dia 21 de março de 2020, quando foi anunciado pelos poderes públicos o regime de quarentena na capital paulista, além do fechamento dos estabelecimentos comerciais, também foi emitido um decreto pelo gabinete do Prefeito suspendendo os Termos de Permissão de Uso (TPU) e as atividades do programa Tô Legal! dos camelôs espalhados pela cidade. No entanto, as taxas a serem pagas à Prefeitura para a manutenção dos TPUs e das atividades do “Tô Legal!” continuaram a serem cobradas, mesmo com os trabalhadores não podendo atuar nas ruas. Esta cobrança chegou a ser comparada a trabalho escravo por um promotor de justiça em audiência pública na Câmara Municipal de SP, que debatia a situação dos trabalhadores ambulantes na cidade.

Isto significa que inúmeros trabalhadores tiveram que manter suas atividades comerciais para garantir condições de sobrevivência em meio à pandemia, enfrentando novas dificuldades colocadas pelo atual momento de proeminente contaminação e queda nas vendas na rua.

Sérgio Silva/Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos

Assim, aos poucos, as ruas foram sendo retomadas pelos camelôs, especialmente nas regiões centrais da cidade, mesmo quando as exigências de isolamento social foram ampliadas e nenhuma outra medida de auxílio dos poderes públicos aconteceu. Nunca o provérbio “vá morrer no Brás” foi tão cruelmente verdadeiro para os trabalhadores ambulantes. Nesse sentido, diante da dificuldade do isolamento social, os trabalhadores aos poucos foram retomando as ruas, colocando-se em risco à contaminação e disseminação da Covid-19 e sujeitos à forte repressão estatal.

A violência policial teve um aumento significativo, tanto pela quantidade de apreensões feitas pela fiscalização, como pelo alto grau de brutalidade praticada, especialmente pela Polícia Militar da Operação Delegada. Muitos automóveis que guardavam mercadorias dos camelôs foram violados pelos “coletes laranjas”, sofrendo apreensões pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) e pela Polícia Militar (PM) no centro da cidade. Há inúmeros vídeos dos ambulantes registrando estas violências circulando pelas redes sociais.

Como forma de defesa das ações abusivas da polícia, bem como de buscar alternativas para os ambulantes na cidade (inclusive na garantia de distribuição de cestas básicas), sobretudo diante do atual cenário, o Fórum dos Ambulantes se lançou em uma série de ações a fim de minimizar os problemas impostos pelo poder público, além de exigir o fim da violência policial.  O Fórum dos Ambulantes congrega uma série de sindicatos e associações dos camelôs na cidade, articulados em torno do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da Central de Movimentos Populares – CMP, mantendo ainda articulações nacionais através da UNICAB, principal entidade nacional de articulação dos ambulantes e camelôs do Brasil, a qual o Fórum também integra.

Uma dessas medidas foi buscar o apoio do Ministério Público. Foi através da cobrança do MP que a Prefeitura de São Paulo (depois de transcorrido três meses de isolamento social), incluiu os camelôs com TPU no programa de distribuição de cestas básicas “Cidade Solidária”, mas sem estender o apoio aos auxiliares de banca, aos cadastrados no “Tô Legal!” e aos camelôs que mesmo com TPU na cidade moram em outras localidades fora do município. Também ficaram de fora milhares trabalhadores do “corre”, especialmente os trabalhadores imigrantes. Tudo isso, engrossando as subnotificações dos dados e os processos de invisibilidade dos trabalhadores ambulantes na cidade.

Com a flexibilização da quarentena e com a reabertura dos comércios e lojas, os camelôs permissionários se engajaram na elaboração de protocolos feitos pelas entidades, nos quais se comprometeriam com uma série de medidas de distanciamento social e higiene para que pudessem ter a autorização da prefeitura para voltarem a ativa. A resposta do retorno ao trabalho veio tardia e repletas de empecilhos. Isso porque os horários estabelecidos pela prefeitura muitas vezes não correspondem à dinâmica de trabalho dos ambulantes nos territórios da cidade. Diante dessa dificuldade, há um alto grau de entrecruzamento das atividades dos ambulantes: permissionários que querem compensar o pouco tempo que a prefeitura permite para o exercício do trabalho passam também a compor e disputar os poucos consumidores com a massa de camelôs do corre existente na cidade.

O maior problema enfrentado neste momento é também a queda das vendas. Seja pelo aumento do desemprego, seja pelas reduções de salários, a questão é que pouco tem se conseguido fazer “girar caixa” com a baixa das vendas e permanecendo à margem do Estado. Além disso, os trabalhadores ambulantes ainda precisam enfrentar as adversidades do conflito urbano com o Estado e buscar saídas populares para a crise econômica.

Diante de tudo isso e tendo como objetivo debater e cartografar o impacto da pandemia no comércio popular no centro de São Paulo, as formas de controle dos espaços urbanos, bem como as ações e iniciativas de articulação utilizadas pelos ambulantes para lidar com os bloqueios e impasses no exercício do seu trabalho, nos dias 02, 09, 16 e 23 setembro ocorrerá o seminário “Ambulantes e Cidade: cartografias da economia popular, tensões nos territórios, conflitos e práticas de resistência, durante a pandemia da Covid-19”, promovido pelo Grupo de pesquisa Cidade e Trabalho, da USP, em parceria com o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, com o Fórum Fronteiras Cruzadas e o com o Fórum dos Ambulantes de São Paulo e o Laboratórios de Justiça Territorial da UFABC – LabJuta, entre outras.

O evento será transmitido através da plataforma virtual do Zoom e contará com a participação de pesquisadores, membros dos movimentos sociais dos ambulantes e trabalhadores do comércio popular. Para acessar a programação completa e se inscrever no evento, basta acessar: https://socialcomunicacao.com.br/seminario-ambulantes-e-cidade/

*Ana Lídia O. Aguiar é doutoranda em sociologia pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho da mesma Universidade.
Benedito Roberto Barbosa é advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, coordenador da Central de Movimentos Populares e doutorando e pesquisador do Laboratório de Justiça Territorial da UFABC ABC/LabJuta.