By / 1 de julho de 2022

Encontro internacional de coletivos discute cartografias, ativismos e remoções


por Paula Santoro e Sebastião Moura*

Nos dias 21 e 22 de junho, como parte dos eventos que refletem e celebram os 10 anos de atividade do Observatório de Remoções, realizamos o encontro internacional “Cartografias, ativismos e remoções: experiências pelo mundo”, que debateu contextos, métodos de mapeamento e cartografias de despejos e remoções, compreendidos como formas de resistências contra esses processos e incidência em políticas, programas e processos que removem.

O evento contou com a presença de vários coletivos, além de grupos de pesquisadores, instituições e iniciativas nacionais e internacionais – para conhecê-los, veja o vídeo de apresentação abaixo – que adotam estratégias cartográficas em processos de disputa envolvendo diferentes formas de violências e despossessões socioterritoriais.


A mesa de abertura do primeiro dia, intitulada “Despossessões e resistências territoriais na América Latina: desafios contemporâneos” teve mediação de Giovanna Milano (SP, Brasil) e contou com as painelistas Gizele Martins (RJ, Brasil), Marcella Araújo (RJ, Brasil), Raquel Rolnik (SP, Brasil) e Verónica Gago (Argentina), que traçaram um panorama do atual contexto político, cultural e social no qual ocorrem os despejos e remoções.

As quatro falas mostraram, a partir de abordagens generificadas e racializadas, as múltiplas dimensões dos processos de despossessão que envolvem, mas não se encerram na perda da moradia, e que não podem ser lidos de forma abstrata, afetam concretamente a vida cotidiana.

Raquel Rolnik, professora da FAUUSP e coordenadora do Observatório de Remoções nestes 10 anos, abriu o debate apresentando as relações entre a financeirização da moradia e do urbano, em diferentes escalas.

Afirmou que estamos em um momento de “neoliberalismo digital financeirizado”, que traz novos significados para nossas velhas histórias e heranças de despossessão, nas periferias do capitalismo. Para ela, o “velho” modelo de despossessão extrativista mobilizou ordens jurídicas, o vínculo com as propriedades, a matemática dos cadastros e criminalizou os que não são proprietários. Assistimos a continuidade deste modelo proprietário, com mudanças mais recentes que (i) articulam mudanças no mundo do trabalho – precarização, uberização e o dito “empreendedorismo”; que, (ii) seguem considerando o espaço construído como lugar central no processo de transformação urbana imobiliária financeirizada, mas agora através das formas de renda que privilegiam o fluxo do capital no tempo – onde o aluguel é central, assim como as plataformas (airbnb e outras) e os proprietários corporativos –; ou (iii) através da superação dos limites que não permitiam que o capital financeiro se inserisse no território popular, viabilizada pelos programas de titularização ou bancarização em massa.

Segundo ela, os efeitos destas mudanças recentes são desastrosos no mundo, criando “paisagens para a renda”, acirrando a competição entre os lugares numa verdadeira guerra, mantendo o modelo urbano excludente que opera por regimes de transitoriedade permanente, e que transforma as formas de vida, as dimensões materiais, simbólicas e políticas do habitat popular.

Em seguida, Verónica Gago, doutora em ciências sociais, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e colaboradora dos coletivos Situaciones e Ni Una Menos, trouxe suas reflexões em torno da ideia da casa como laboratório, conteúdo de uma publicação feita em co-autoria com Luci Cavallero. Nela, procuram responder por que o endividamento está dirigido a mulheres? Que tipo de corpos, territórios e economia  são hoje os prediletos por estes mecanismos financeiros de endividamento?

Afirmou que os dispositivos financeiros de endividamento se aprofundaram e se aceleraram durante a pandemia, a casa se tornou um laboratório pois é o espaço onde se deu a intensificação (i) do endividamento – que já acontecia para a reprodução social, compra de alimentos, medicamentos,… – que se amplia com o endividamento para pagar o aluguel ou a moradia, aumentados pelo crescimento das dinâmicas e da especulação imobiliária; (ii) do trabalho do cuidado, doméstico e as mulheres são as que estão à frente da maior carga de trabalho reprodutivo; e (iii) da violência de gênero. Assim, segundo Gago, arma-se um triângulo, um cruzamento de dinâmicas movidas pelas finanças, onde a casa está no centro.

A fala de Marcella Araújo, professora do departamento de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Urbano – Laboratório de Estudos da Cidade, se dedicou a tentar explicar a relação de grupos milicianos com a produção do espaço e com os mercados imobiliários nos territórios populares fluminenses.

Marcella fala de milícias, no plural, admitindo que estas são descritas de formas múltiplas: algumas milícias se organizam a partir dos próprios moradores, organizando a si mesmo e seus vizinhos; em outros lugares, as milícias invadem áreas, com mediação ou não da polícia militar, podem fazer limpeza para que haja troca de comando dos territórios, cobrar “arregos” ou fazer vista grossa de venda de drogas.

Ela aponta que as milícias são agentes dos mercados imobiliários – organizam ocupações de terra, mutirões e obras, produzem prédios de apartamento, alugam e vendem casas, cobram taxas de aluguel e de compra e venda – e que as remoções fazem parte de seu modo de gestão desses territórios: movem populações para outras áreas de risco, alimentam espaços e áreas já controladas por milicianos. Mas faz uma ressalva: práticas de auto-construção fazem parte da moradia popular e é preciso tomar o cuidado de não criminalizar esses fenômenos ao analisar o mercado produzido pelas milícias.

Também defende que remoções públicas não servem ao combate de grupos criminosos como a narram os governos. Pelo contrário, as políticas habitacionais de urbanização, nos seus processos de negociação para se inserirem nos mercados de territórios controlados, têm servido como uma frente de expansão de mercados e serviços urbanos para grupos milicianos e de tráfico de drogas, alimentando o mercado imobiliário não formalizado e mantendo as pessoas em condições vulneráveis.

A intervenção final foi de Gizele Martins, jornalista, doutoranda em Comunicação pela ECO e militante do Movimento de favelas do Rio de Janeiro há 20 anos, que continuou falando do contexto fluminense, a partir da Favela da Maré. Para Gizele, a Maré e o Rio foram em 2008 um laboratório da militarização que hoje está no país inteiro.

Ela afirma sem rodeios: é o racismo estrutural que escolhe o território a ser militarizado ou removido e as inúmeras violações em debate no evento. No território popular, na favela, o Estado não oferece saúde, educação, habitação, água ou saneamento, mas o dinheiro público é gasto abundantemente em política de militarização – escolhendo como quem sofre mais uma população em maioria negra, indígena, quilombola.

Mas a Maré é também transformação, potência. Gizele se afirmou “mareense”, e colocou a luta pela memória, orgulho negro, defesa das identidades, como parte da reação da Maré a esta gestão do território popular militarizado.

E terminou dizendo que a favela não anda sozinha. Marcella também havia enfatizado a necessidade de alianças e arenas públicas ampliadas – com universidades, com movimentos de favela, movimentos sociais urbanos, entre tantos outros – em um esforço de, apesar da gestão e do controle, encontrar frestas nesta dominação local e promover debates e pontes em diferentes escalas. As duas falas fecham a abertura situando os coletivos organizados que compuseram os debates do segundo dia de evento.

Confira a gravação da mesa completa aqui (disponível com áudio em português ou inglês):



Oficina “Cartografias e despossessões: desafios”

No segundo dia, realizamos uma oficina na qual os vários grupos participantes trocaram relatos e reflexões sobre suas experiências de atuação.

Participaram a Campanha Despejo Zero, os laboratórios ETTERN e Labá, da UFRJ, o núcleo Motyrum Urbano da UFRN, os projetos Nova Cartografia Social da Amazônia, Mapeamento CNJ e o Panorama dos Conflitos Fundiários, o Monitoramento Nordeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, o Instituto Pólis, a Plataforma de Afectadas por la Hipoteca (Espanha) e os grupos Anti-Eviction Mapping Project (EUA), Geocomunes (México), Geografia Crítica (Equador), Ni una a menos (Argentina) e Chimurenga Chronic (África do Sul).

Confira a gravação completa da oficina (disponível com áudio em português, inglês ou espanhol):


O evento “Cartografias, ativismos e remoções: experiências pelo mundo” é uma realização do Observatório de Remoções com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, do Instituto Pólis e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da Universidade de São Paulo.

*Paula Santoro é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Sebastião Moura é graduando na ECA-USP e membro da equipe de comunicação do LabCidade.

 


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