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Obra da Fábrica dos Sonhos, localizada a aproximadamente 1,5 km do sambódromo do Anhembi, junto à Ponte da Casa Verde.

Por Rodrigo Faria G. Iacovini* e Henrique Frota** 

No primeiro texto que publicamos sobre a Fábrica dos Sonhos – uma das intervenções incluídas na revisão da Operação Urbana Consorciada Água Branca (OUCAB) –, apontamos alguns questionamentos sobre a finalidade do projeto e sobre o uso de uma considerável área pública para sua construção. No entanto, não apenas a terra pública escassa está sendo consumida, mas também uma quantia razoável de dinheiro público foi destinada ao projeto. Isso suscita uma série de outras questões, especialmente pelo fato de que, neste momento, mais de cinco anos depois de iniciado o projeto, a Prefeitura de São Paulo busca incluí-lo no primeiro pacote de intervenções a serem realizadas no âmbito da Operação Urbana.

Formulado na gestão do então prefeito Gilberto Kassab, o projeto da Fábrica dos Sonhos previa utilizar em torno de R$ 12 milhões dos cofres municipais. Este valor, contudo, subiu para R$ 30 milhões quando da primeira tentativa de licitação, de acordo com o apurado pelo jornal O Estado de S. Paulo. A licitação foi suspensa pelo Tribunal de Contas do Município (TCM), que levantou algumas questões relativas a irregularidades nos termos do seu edital.

Em 2009, a Prefeitura optou pela publicação de um novo edital, no qual estabelecia teto de R$ 124.997.806,38 para a obra – estranhamente mais do que quadruplicando o valor anterior de R$ 30 milhões – e afirmava que o recurso seria integralmente viabilizado pelo Tesouro Municipal de São Paulo, por meio do orçamento da Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB). No julgamento da licitação, foram habilitadas e classificadas três propostas em agosto de 2010: a vencedora, do consórcio Schahin/Passarelli, no valor de R$ 124,1 milhões; uma de R$ 124,6 milhões, oferecida pelo consórcio Engeform/Andrade Gutierrez; e a terceira, de R$ 124,9 milhões, apresentada pela Construtora OAS. A proximidade e a exatidão dos valores apresentados pelas concorrentes é, no mínimo, curioso, ainda mais para um projeto cujos valores oscilaram tanto desde o início de seu desenvolvimento. Finalizado o processo de contratação e de licenciamento ambiental, a obra foi iniciada em julho de 2011.

Mas se o projeto começa em 2009, é licitado em 2010, e as obras se iniciam em 2011, sua inclusão no âmbito da Operação Urbana Água Branca (a qual formalmente existe desde 1995) somente ocorreu em 2013, quando aprovada a Lei Municipal nº 15.893/2013, que reviu as diretrizes da Operação. E é apenas nesse momento que finalmente se inicia a relação entre a Fábrica dos Sonhos e a OUCAB: esta Operação, por força da nova lei, financiará a maior parte daquele projeto, segundo o Plano de Intervenções aprovado às pressas e de forma atropelada no âmbito do Grupo de Gestão, em agosto deste ano. Esse plano, necessário para se iniciar o processo de venda de Cepacs (certificados de potencial adicional construtivo) – através dos quais a Operação arrecadará recursos –, prevê o repasse de R$ 106 milhões para a Prefeitura de São Paulo, ou seja, financiará mais de 85% do projeto.

Como a obra foi iniciada em 2011 e já se encontra bem avançada, isso suscita uma série de questões. Qual terá sido o sentido da inclusão de uma obra em andamento há mais de três anos no pacote de intervenções da OUCAB? Se o recurso da operação urbana era necessário ao projeto, como ele pode ter sido iniciado muito antes de a Lei Municipal nº 15.893/2013 ter sido aprovada? Por outro lado, se tais recursos não eram necessários para a construção da Fábrica, por que então estão sendo destinados para ela aproximadamente 3,3% da arrecadação total prevista para a Operação (estimada em R$ 3,1 bilhões, segundo seu prospecto)? O recurso repassado pela OUCAB para o projeto será utilizado para pagamentos futuros às construtoras ou para ressarcir a Prefeitura dos gastos já feitos no passado? Na hipótese de ressarcimento, o que será realizado com este recurso pela Prefeitura de São Paulo? Ele será reinvestido na área da OUCAB?

Deve-se lembrar que uma Operação Urbana Consorciada não é apenas um meio de a Prefeitura obter recursos para a implementação de qualquer projeto, mas sim um instrumento de captação de recursos para a realização de uma intervenção integrada e planejada em um determinado território. O Estatuto da Cidade estabelece que deve constar na lei municipal específica de cada operação um plano no qual sejam definidos integradamente seu perímetro, o programa de ocupação, as finalidades, as contrapartidas, as formas de controle, dentre outros conteúdos. Esse plano é o orientador das intervenções futuras e deve guiar a atuação do Grupo de Gestão. Ou seja, esses R$ 106 milhões da Operação não podem simplesmente servir para reembolsar a Prefeitura de São Paulo por uma obra já em finalização. Na realidade, a inclusão desse projeto na lei da OUCAB inverte o papel que os recursos de uma OUC devem cumprir: financiar a mudança do território e não ressarcir obras que estão sem recurso para serem terminadas.

Além disso, do ponto de vista do Direito Administrativo, a medida revela-se pouco ortodoxa. A Lei nº 8.666/93, que estabelece normas gerais para as licitações e contratos administrativos, exige que as obras e serviços somente sejam licitados se houver previsão de recursos no orçamento público que assegurem o seu pagamento (art. 7º, §2º, III). Isso ocorre para evitar contratações sem o devido recurso correspondente na lei orçamentária, o que levaria à impossibilidade de pagamento por parte da administração pública. Portanto, se a licitação realizada pela Prefeitura em 2010 foi considerada válida, conclui-se que atendeu aos requisitos da legislação, dentre os quais a existência de recursos para custear as obras. Então, por que a Prefeitura necessita agora de R$ 106 milhões para arcar com as despesas de uma obra cujos recursos já existiam desde 2010? O que foi feito deles?

É de costume na Administração Pública, ainda, que o pagamento por uma determinada obra seja feito ao longo de sua execução. A cada etapa finalizada pela construtora, é feita a chamada “medição”: técnicos apontados pelo poder público verificam o cumprimento de todos os requisitos estabelecidos para a obra e recomendam ou não a liberação de uma determinada parcela do pagamento. Embora no portal de transparência da Prefeitura de São Paulo constem apenas os dados do contrato relativos ao ano de 2014 (com pagamento de aproximadamente R$ 22,3 milhões), como a obra da Fábrica já se encontra em finalização, muito provavelmente já houve mais de um pagamento ao consórcio contratado – mesmo que o sistema de transparência da Prefeitura não forneça os dados relativos aos anos anteriores. De toda forma, permanece válida a questão: quanto já foi pago no total e quanto ainda deve ser pago ao consórcio?

Enfim, diversas questões ainda estão em aberto sobre o financiamento do projeto e precisam urgentemente ser respondidas, sob pena de parecer mal uso de verba pública ou até mesmo desvirtuamento das finalidades da Operação Urbana Consorciada Água Branca. Não é possível, como parece ser a intenção da Prefeitura de São Paulo, que estes recursos sejam utilizados como reembolso aos seus cofres. Uma Operação Urbana recupera valores obtidos com a valorização da terra, através da venda de CEPACs, e os reinveste no mesmo lugar. A utilização destes valores como “reembolso” aos cofres públicos inverte esta lógica, de captura e investimento no mesmo lugar, uma vez que estes podem ser utilizados em outros lugares da cidade, sem destinação específica.

Por outro lado, caso a Prefeitura tenha deixado, de 2010 para cá, de ter os recursos necessários ao pagamento do projeto da Fábrica por algum motivo, isso tem que estar absolutamente claro, até mesmo para uma possível responsabilização dos agentes envolvidos. Não cabe, sob qualquer hipótese, no uso de recursos públicos, a máxima do “devo, não nego; pago quando puder”, mas também não nos parece juridicamente possível a utilização de verbas da operação urbana na forma que se está pretendendo.

*Rodrigo Faria G. Iacovini é advogado, mestre em planejamento urbano pela FAUUSP e faz parte da equipe do observaSP.

**Henrique Frota é advogado e Secretário-Executivo e Coordenador de Projetos do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).