Foto: Benedito Barbosa

Falta de políticas públicas de suspensão de despejos, bem como impasses no acesso à justiça durante a pandemia, são pautas de pesquisa do PECFU/Transborda (UNIFESP), vinculado ao Observatório de Remoções

Breno Nascimento, Dandara Ceconi*

Uma pesquisa em desenvolvimento no PECFU (Projeto Conflitos Fundiários Urbanos), da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), vai catalogar mais de 2000¹ sentenças judiciais do período entre 18/03/2020 e 01/03/2022 em três fóruns da zona leste da cidade (Tatuapé, Vila Prudente e Itaquera). A investigação também quer analisar as argumentações usadas pelos juízes nas decisões relacionadas aos despejos durante a pandemia da COVID-19, além de traçar o perfil dos réus (em termos de renda, gênero e território onde vivem). O trabalho, cujo encerramento está previsto para junho deste ano, também irá elaborar um mapa desses despejos ocorridos na zona leste de São Paulo.

Face ao aumento substancial da população em situação de rua (que cresceu pelo menos 31% entre 2019 e 2021, de acordo com Censo promovido pela Prefeitura), vêm sendo identificados conflitos entre a interpretação dos juízes e o princípio da vigência imediata dos direitos humanos, previsto no §1º do artigo 5º da CF/88 na aplicação de instrumentos jurídicos como a ADPF 828 (que suspende os despejos por falta de pagamento de aluguel até junho de 2022, graças a muita mobilização).

É fundamental colocarmos em foco as tensões entre relações contratuais (em teoria, sem vulneráveis) e a perspectiva de que a discussão em torno do aluguel é, sim, uma discussão sobre direito à moradia – e de que inquilinos, sobretudo os mais pobres, devem ser considerados como vulneráveis. A tendência quase unânime dos tribunais estaduais e federais hoje é acatar as solicitações de reintegração de posse e despejos coercitivos, negando ou simplesmente ignorando direitos sociais garantidos constitucionalmente, como o direito à moradia.

Autoras como Ester Rizzi (2008), Giovanna Milano (2017; 2018) e Bianca Tavolari (2021a; 2021b)  já mostraram, em diferentes trabalhos, como a estratégia dos juízes e juízas tem sido minimizar a função social da propriedade e do contrato, limitando-a uma subordinação restrita aos Código Civil e de Processo Civil.

É possível observar este aspecto nas pouquíssimas sentenças que mobilizaram tanto a ADPF 828 quanto a Lei 14.216/21, que suspendeu a concessão de liminares de despejo nas ações ajuizadas no valor de até R$ 600,00 para imóveis residenciais até dezembro do ano passado:

Fórum Citações e suspensões referentes à ADPF 828 Citações e suspensões referentes à Lei 14.216/21
Tatuapé 4 (0 suspensões) 2 (0 suspensões)
Itaquera 3 (1 suspensão) 4 (1 suspensão)
Vila Prudente 2 (2 suspensões) 2 (0 suspensões)

Os índices do segundo ano de pandemia ficaram abaixo dos números verificados em relação a outra lei inefetiva que suspendeu as liminares de ações de despejo, a Lei 14.010/20, que vigorou entre setembro e outubro de 2020. Segundo uma de nossas pesquisas anteriores, 0,75% das ações ficaram suspensas em virtude desta lei – enquanto, como é possível observar na tabela, apenas 0,34% das ações ficaram suspensas no segundo ano de pandemia.

Para os fóruns analisados, o número de despejos aumentou em 12% no segundo ano de pandemia:

Fórum Ações protocoladas entre 19/03/20 e 28/02/21* Ações protocoladas entre 01/03/21 e 01/03/22*
Tatuapé 474 529 (+10,4%)
Itaquera 221 307 (+28%)
Vila Prudente 329 327 (-0,6%)

A pesquisa observou que as interpretações do Judiciário resultam de uma visão reducionista da lei, que prioriza a propriedade privada acima de todos os outros direitos fundamentais dos envolvidos no processo.

Essa abordagem institucional privilegia a aplicação de outras leis em detrimento das normas constitucionais, priorizando os interesses do proprietário em face dos inquilinos e resolvendo os conflitos através de ações violentas de desocupação dos imóveis que acarretam em diversas violações a direitos fundamentais.

Este tipo de abordagem desconsidera a necessidade de conciliar os interesses privados de proprietários com o bem-estar coletivo e ignora prerrogativas legais e sociais fundamentais no momento da decisão. Como consequência disso e da falta de interpretação sistemática das normas, a efetividade da aplicação do Direito à Moradia reconhecido no  § 1º do artigo 5º da CF é prejudicada.

A incorporação do direito à moradia e das múltiplas realidades de vínculo de moradia (incluindo o aluguel) nas interpretações conferidas pelo judiciário ainda é um grande desafio, já que os magistrados seguem privilegiando compreensões abstratas em torno da propriedade e deixam de avançar na qualificação do tratamento jurídico a uma realidade que permeia o cotidiano de tantos brasileiros, como o aluguel.

* Breno Nascimento é especialista em Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular, pela UNIFESP e mestrando da UFABC; Dandara Ceconi é advogada pela PUC-Campinas. Ambos são pesquisadores do PECFU-UNIFESP.

¹ A pesquisa catalogou apenas as sentenças relacionadas a imóveis residenciais.