Parada de ônibus na Avenida Belmira Marin, no Grajaú. Rivaldo Gomes/Folhapress

Este texto faz parte de uma série de publicações em nosso site com os artigos da equipe do LabCidade e parceiros no congresso Fórum SP 21: Plano Diretor e Política Urbana de São Paulo, realizado de maneira virtual entre os dias 21 e 30 de setembro de 2021. Os textos enviados ao evento foram levemente alterados para estar aqui em uma versão mais enxuta.

Gisele Brito e Raquel Rolnik*

O Novo Grajaú, na zona sul de São Paulo, foi loteado em 1990 de maneira irregular em uma área de proteção aos mananciais e sua pavimentação só foi feita em 2003. Até a obra ser concluída, era comum que moradores de outros bairros identificassem quem vivia ali como “moradores da Rural”, ou da “ZR”, abreviação de Zona Rural. Isso em função da abundância da vegetação, de gado, cavalos e lama. Quando foi finalmente asfaltado, em concordância com a Lei Municipal 10.558/88 (SÃO PAULO, 1988), o serviço foi pago pelos moradores diretamente à empreiteira. Quem pôde arcar com os custos à vista teve de desembolsar R$ 863,09, o equivalente a 3,5 salários-mínimos da época.

Atualmente, o bairro conta com ruas largas o suficiente para o trânsito de mão dupla, iluminação e serviços públicos, como água, coleta de esgoto, luz, coleta de lixo e uma praça, que, mesmo sem nome oficializado pelo poder público, tem equipamentos de ginástica, brinquedos, árvores, bancos e uma quadra com piso de cimento. Por outro lado, o bairro não teve concluído nenhum processo de regularização fundiária, o que justifica a prefeitura manter a praça inominada. Mas é também um território que não sofre ameaça iminente de remoção de seus moradores, cujas casas são, em sua maioria, sobrados com acabamento na área externa e garagem.

Ainda que visualmente o bairro não expresse mais a precariedade evidente nos primeiros anos de sua ocupação, a espoliação urbana e a injusta distribuição de recursos públicos estão inscritas em sua trajetória e na vida de seus moradores — assim como de outros bairros. Pelas ruas do bairro não circula nenhuma linha de ônibus. Não há nenhum equipamento de saúde ou cultura. Apenas em 2016, uma das duas áreas de lazer disponíveis – um campo de futebol – foi removida para dar lugar a um centro de educação infantil conveniado à prefeitura.

A transformação também está presente nos depoimentos colhidos no Inventário Campo Limpo: Memoráveis Paisagens, realizado a pedido do Sesc Campo Limpo, em 2018, apresentado durante a Jornada do Patrimônio de 2018 por por Gisele Brito, Aline Rodrigues, Anabela Gonçalves, Leonardo Britto, Ronaldo Matos e Tony Marlon.

Para aqueles que moram num perímetro de 2,5 km de distância do Sesc localizado no bairro da zona sul, as principais mudanças físicas elencadas estavam relacionadas ao surgimento de empreendimentos imobiliários, à estrutura viária — incluindo asfaltamento, canalização de rios e abertura de vias — e ao incremento de serviços públicos e privados. As menções à estrutura viária e imobiliária aludem à eliminação de formas de lazer, enquanto as transformações na oferta de serviços privados aparecem nas entrevistas como indicação da melhoria na qualidade de vida, especialmente com o surgimento de um supermercado no final dos anos 1980; depois, no mesmo terreno, o lançamento do Shopping Campo Limpo, em 2005; e a inauguração do próprio Sesc, em 2014.

As entrevistas também indicaram a permanência de condições sociais, como a segregação em relação ao restante da cidade e a diferenciação interna no território. Essas transformações não são exclusivas desses territórios e podem ser observadas em bairros que abrigaram população de baixa renda a partir dos dos anos 70.

Entre o ano 2000 e 2018, enquanto no conjunto do município o número de estabelecimentos e empregos formais no setor de comércio, serviços, indústria de transformação e construção civil que promovem trabalho formal cresceu 48%, em 18 distritos, todos localizados nos extremos da cidade, o crescimento passou dos 100% – em quatro deles a quantidade desse tipo de estabelecimento passou de 200%. Em Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade, a variação chegou a 354%. Ainda que esses estabelecimentos gerem proporcionalmente poucos empregos formais, a multiplicação de galerias comerciais, lojas de serviços eletrônicos e supermercados tem diminuído a distância entre os moradores e atividades do cotidiano, como a compra de roupas e calçados, móveis, eletrônicos, educação e sociabilidade.

Dessa forma, o investimento privado e em pequena escala dos moradores das periferias, combinado com o investimento público, tem constituído um processo de auto urbanização, que gera deslocamentos atípicos para a lógica de circulação casa-trabalho ou centro-periferia, criando uma dinâmica periferia-periferia, impulsionadas pela criação de centralidades autoconstruídas, que tensionam a localização desses territórios na geografia da cidade. “Perto” e “longe”, “centro”e “periferia” se transformam junto com a paisagem.

O Baile da Helipa, na favela de Heliópolis, na zona sul de São Paulo, por exemplo, aponta a pesquisa Recovida [coordenada por Paulo Lotufo da Faculdade de Medicina da USP e integrada pelo LabCidade e outros grupos de pesquisa, investiga as circunstâncias do contágio e óbitos por covid 19 em regiões da capital], é um polo de atração de pessoas vindas de diversas outras regiões da capital e da região metropolitana. Apesar de ser uma favela, uma das maiores da São Paulo, ocupa uma posição de centralidade na metrópole.

Essas transformações são fruto de investimentos privados articulados com a instalação de redes de serviços e infraestrutura pública. No entanto, também são muito diferentes dos processos que constituíram o chamado centro expandido, marcadas por produtos imobiliários financeirizados. Assim, as transformações nas periferias parecem estar mais próximas das “paisagens para a vida” que: Construídas pelas e para as maiorias, a partir da lógica da sobrevivência, das  necessidades e dos desejos de prosperidade, elas se instalam progressivamente – sem plano prévio, mas em relação permanente com as próprias formas propostas pelo planejamento –, em condições escassas de recursos, sobre as localizações disponíveis: periferias distantes, áreas declaradas pelas normas do planejamento urbano como impróprias, terrenos e construções abandonadas. (ROLNIK, 2019)

As questões acima traçam um panorama das transformações das periferias, cujo processo de produção foi amplamente estudado, mas cujas transformações recentes têm menos espaço na literatura acadêmica e no debate sobre a política urbana materializada no Plano Diretor. Mas apesar de admitir a necessidade de reduzir as vulnerabilidades desses territórios, as soluções apontadas são discriminatórias e não dialogam com suas transformações.

Ainda que a falta de moradia adequada, a baixa qualidade de serviços públicos e privados em quantidade e qualidade permaneçam nas periferias, as políticas discriminatórias e discricionárias que ali operam vão além da existência ou não destes equipamentos e serviços. Outras condições, como o racismo estrutural, mantém, na periferia econômica e política, mesmo aqueles territórios onde houve melhorias em indicadores socioeconômicos e urbanos. As centralidades que ali se desenvolvem não são reconhecidas e muito menos apoiadas por instrumentos e estratégias de planejamento. Este processo é pouco pesquisado pelos estudos urbanos, especialmente pelo planejamento. A consequência disso é a manutenção e atualização da gestalt discriminatória que estrutura e renova a segregação urbana que modela a cidade.

*Mestre em Planejamento Urbano e Regional FAUUSP; professora Titular FAUUSP e coordenadora do LabCidade