* Por Aluízio Marino e Raquel Rolnik

A escalada da violência contra o fluxo da cracolândia, que se intensificou desde a dispersão dos usuários do entorno da Praça Princesa Isabel em maio de 2022, não diminuiu as cenas de uso e tampouco o número de seus frequentadores, ao contrário do que defendiam gestores e delegados responsáveis. Os dados apresentados na tabela abaixo foram extraídos nos últimos três meses, da Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP). Os números correspondem a uma média semanal de pessoas presentes nos fluxos. Essa média de frequentadores é obtida, segundo a metodologia informada pela SSP, a partir de imagens de drone do Programa Dronepol e contagens realizadas em campo pela Guarda Civil Metropolitana (GCM), Polícia Militar (PM) e Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

Quantidade de pessoas cenas abertas por semana observada (fonte: SSP-SP)¹

Semana

Média Manhã Média Tarde Média geral

03/04 – 09/04

876

1.202

1.039

01/05 – 07/05

1.218

1.422

1.320

26/06 – 02/07

1.286 927

1.106

Ao longo destes três meses, em que os dados estão disponíveis, verificamos que o número de frequentadores se mantém, mesmo com o aumento significativo do aparato policial e repressivo no território. Existe uma variação no número, que pode girar entre 900 e 1.500 pessoas, a depender do dia e do horário, mas a média de frequentadores se mantém próxima a 1.200 pessoas. Esses números estão bastante próximos, inclusive, de cálculos realizados em períodos anteriores, como pode ser verificado na pesquisa realizada pela UNIFESP entre 2016 e 2022.

Embora atualizados semanalmente, a ferramenta da SSP-SP não armazena um histórico, mas apenas os dados da última semana, o que impossibilita um acompanhamento efetivo dos resultados da política por parte da sociedade civil. As informações apresentadas aqui foram coletadas e armazenadas pelo LabCidade.

Mapa 1. Localização das cenas abertas de uso entre 26 de junho de 02 de julho de 2023 (fonte: SSP-SP)

O mapeamento foi lançado poucos dias após um arrastão em uma farmácia na Avenida São João no dia 07 de abril de 2023. Fato que provocou grande repercussão no debate público, sendo que o mapa parece ter sido uma resposta imediata à comoção pública gerada. Identificada como “Diagnóstico Criminal Região Central – Cenas Abertas de Uso”, além do mapa e do contador de frequentadores das cenas de uso, trata-se de uma plataforma que também apresenta dados das ocorrências de roubos e furtos, conforme a imagem abaixo.

Mapa 2. Ocorrências de roubo a transeuntes entre os 26 de junho de 02 de julho de 2023 (fonte: SSP-SP)

A forma de representação escolhida – os ícones, por exemplo – reforça a ideia de um território perigoso. O modo como as informações também são disponibilizadas estabelecem uma associação direta entre as ocorrências de crimes e a presença das cenas de uso. Entretanto, não é possível associar essas duas dinâmicas apenas com as informações disponibilizadas pela SSP. Essa narrativa não é nova: a própria escolha do nome por si só, a “Cracolândia”, define o território como lugar da droga e do tráfico, dominado pelo crime – o que justificaria ali a prática de uma política de exceção. A novidade trazida pela ferramenta da SSP é mobilizar a cartografia para incitar respostas ainda mais violentas.

É importante destacar que os fluxos da cracolândia não estão em toda a região central. Embora em constante deslocamento, provocado pela violência das forças policiais somadas a serviços de “limpeza urbana”, os fluxos da cracolândia permanecem em um domínio territorial muito semelhante desde a década de 1990. Como podemos ver no Mapa 1, 24 das 26 cenas de uso mapeadas se concentram no pedaço entre os bairros da Santa Efigênia, Luz e Campos Elíseos, apenas mudando de uma rua para outra.

Anteriormente ao mapa da SSP, o LabCidade, em colaboração com ativistas e profissionais que atuam no fluxo, cartografou a dispersão das cenas de uso, e já denunciava a ineficácia desse tipo de estratégia, que ao contrário de solucionar a questão, de multiplicar as cenas de uso, gera conflitos com a população do entorno e dificulta os atendimentos da rede de assistência psicossocial.

O mapa divulgado ganhou grande repercussão e gerou respostas imediatas da prefeitura, que logo tratou de deslegitimar o levantamento realizado, afirmando que a dispersão demonstraria, em médio prazo, ser uma escolha correta. Contradizendo os especialistas em saúde mental e política de drogas, a justificativa apresentada era de que a dispersão facilitaria o atendimento e o cuidado aos usuários, já que as abordagens seriam realizadas em grupos menores. Além disso, as operações estariam diminuindo o número de frequentadores dos fluxos: ainda em junho de 2022 apontavam uma redução no número de novos usuários na Cracolândia.

Essa narrativa já não coincidia com a percepção de quem circula, mora e trabalha nesse pedaço da cidade de São Paulo. Agora, os próprios dados apresentados pela SSP desmentem essa afirmação. O mais contraditório é que, ao mesmo tempo que essas informações evidenciam que a Cracolândia não está diminuindo – uma das principais justificativas anteriores para a política de dispersão -, a forma como ela é disponibilizada se aproveita dos impactos dessa estratégia fracassada, sem mencioná-la, para disseminar medo e pânico na população.

Os mapas são representações de uma parte da realidade, invariavelmente toda cartografia é uma narrativa que mostra mas também esconde informações. A narrativa apresentada pela SSP-SP ignora que a situação atual é, na verdade, resultado da sua própria ação. Embora mapeada como nunca antes em sua história, persiste uma tentativa de invisibilizar e esconder os reais problemas que geram e mantêm a situação drástica e perversa da Cracolândia de São Paulo. A escolha de não apresentar um histórico dessas quantidades parece ser parte desse esforço.

Escamotear a aposta no erro, parece fazer algum sentido aqui: ao invés de solucionar ou mediar os conflitos existentes, a dispersão apenas justifica a ampliação de uma verdadeira guerra urbana. Sabe-se que a violência nunca acabou com cracolândia e não será diferente agora. Manter essa estratégia serve apenas à especulação, manutenção de aparatos de controle – como encarceramento e internação compulsória -, destruição do patrimônio e despossessão de famílias e pequenos comerciantes.

 

(*) Aluízio Marino é pós doutorando pela FAUUSP e coordenador do LabCidade e Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade.