Foto: Iana Ludemir, 2013

No último mês de setembro, o LabCidade FAUUSP, com apoio do COES (Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social) e do Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales (PUC), do Chile, e da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, organizou o “Seminário Internacional Moradia de Aluguel na América Latina: Estado, finanças e mercados populares”, que contou com 13 mesas de apresentação oral de 56 trabalhos selecionados, além de palestras de abertura e encerramento com palestrantes convidados. A partir desta semana, vamos sintetizar alguns temas importantes apresentados, como um guia de exploração ao registro do seminário, que está disponível integralmente online, nos Anais de Resumos Expandidos, e nos vídeos das apresentações orais no nosso canal do Youtube. Serão ao todo quatro textos, correspondentes aos quatro eixos do Seminário: 1. Mercados populares de locação; 2. Políticas públicas de locação; 3. Financeirização da locação residencial; e 4. Ativismos ligados à locação residencial.

Eixo 1: Mercados Populares de locação na América Latina

Por Isadora Guerreiro*

O primeiro dos eixos do seminário, retomado agora neste post, tratou do aluguel nos mercados populares informais, trazendo a dimensão deste mercado que aumenta exponencialmente os conceitos, categorias e tipologias encontrados e revistos ao se depararem com as práticas destes territórios.  O seminário revelou um contexto explosivo de transformação em toda a América Latina, nas últimas duas décadas, do acesso à moradia informal pelas classes populares. Se até o final do século passado a urbanização periférica era descrita principalmente pelas tomadas de terras ou de imóveis vazios diretamente para moradia dos seus primeiros ocupantes, por meio do mecanismo da posse precária e autopromoção coletiva do habitat, atualmente o cenário se alterou. A escassez de novos espaços livres ou viáveis de ocupação – seja pela sua inexistência nas metrópoles, seja por sua disputa no âmbito das grandes políticas de habitação com subsídio à demanda no continente – levou a uma dupla dinâmica de produção recente dos territórios populares. Por um lado, houve consolidação e adensamento com verticalização em parte deles; por outro, grandes remoções que intervêm com investimento público fixo (infraestrutura e habitação, no caso de urbanização de favelas) e contínuo (principalmente na forma de auxílios em massa ao aluguel). Desta maneira, alteram-se as relações de acesso a este espaço produzido por uma multiplicidade cada vez maior de agentes e forças sociais. 

A síntese desta nova conjuntura em toda a América Latina foi exposta com dados e imagens por uma das palestras de encerramento do Seminário, feita pelo Prof. Pedro Abramo. Apoiando-se em uma pesquisa ainda inédita, o autor mostrou o aumento exponencial da importância do aluguel nos mercados imobiliários informais, em suas diversas configurações. Segundo ele, a título de exemplo, em 2018 cerca de 80% dos novos moradores das favelas do Rio de Janeiro acessaram suas moradias por meio de processos comerciais imobiliários informais, com gradual aumento das formas locatícias em relação à compra e venda desde meados dos anos 2000. Esta predominância, ainda segundo ele, também se observa em outras cidades brasileiras estudadas: Belém, Brasília, Recife, Salvador, Florianópolis e São Paulo; e, em outras cidades de países também observados: Buenos Aires (Argentina), Bogotá (Colômbia), Lima (Perú) e Caracas (Venezuela).

As particularidades e variações desta nova dinâmica foram expostas, principalmente, nas Mesas 1) Aluguel e moradia precária nas áreas centrais; 2) Aluguel em favelas; e 5) Políticas habitacionais e mercados populares de aluguel. Houve ainda apontamentos indiretos também relevantes nas mesas 6) Despejos, remoções e o aluguel temporário; 10) Aluguel e mercados fundiários; e 11) Crise dos aluguéis e seus impactos

O rico universo por trás das relações de acesso intermediado à moradia informal nos assentamentos precários de toda a América Latina foi revelado no conteúdo apresentado na Mesa 2. O aluguel informal em áreas precárias não é novidade, como adiantou o Prof. Alex Magalhães (IPPUR-UFRJ, Brasil). Trata-se, ao contrário, de um processo histórico e continuado no tempo, conhecido pelo poder público e pela legislação, que nunca se relacionou com ele – seja coibindo ou dando suporte de habitabilidade. Em sua fala, Magalhães descreveu vários aspectos importantes deste submercado – assim denominado pelo Prof. Pedro Abramo por ter oferta de produtos (cômodos de aluguel) com características próprias, não ofertados no mercado formal e, portanto, não intercambiáveis. Magalhães chama a atenção para as definições: “informalidade”, no âmbito jurídico, é a falta de forma previamente especificada, a forma “livre” – e, neste sentido, o informal não é necessariamente ilegal. 

No caso do aluguel, realmente, há possibilidades de arranjos diversos. Ele frisa que uma das novidades em curso é a busca, cada vez maior, por “formas” mais estáveis e reconhecidas socialmente de gestão desses acordos informais, como corretores, contratos, etc – neste aspecto, é importante observar e descrever que as práticas sociais têm juridicidade própria. Suas hipóteses se relacionam com a formação, neste mercado, de certa ética comunitária ligada a relações de reciprocidade e de retribuição, à formação de uma dimensão de equidade baseada em certa “lei das compensações” que dariam origem a um Direito flexível. Em sua apresentação, Magalhães nos provoca a pensar: ainda faz sentido falar em informalidade na caracterização desses mercados, com dinâmicas que, cada vez mais, espelham os chamados mercados formais? Ou ainda, o que caracterizaria o informal nesses mercados, diferenciando-os hoje dos chamados mercados formais? 

O Prof. João Pires Meyer (FAUUSP, Brasil), a partir de sua pesquisa na favela paulistana de Paraisópolis, já definiu distintos níveis entre formalidade e informalidade que precisam ser observados em pesquisas sobre o mercado imobiliário em assentamentos precários. Para ele, a informalidade pode ser: 1) da unidade habitacional (questão de regularidade edilícia, forma de divisão do imóvel entre os posseiros/proprietários e de aspectos do processo de construção),; 2) da situação urbana (integração à cidade formal com infraestrutura e regularização fundiária); 3) da relação entre proprietário e inquilino (questão contratual e presença de intermediários), ou ainda das 4) relações econômicas e fiscais (pagamento de impostos e taxas). A apresentação do Prof. Jaime Hernández-García (Pontificia Universidad Javeriana, Colômbia), na mesma Mesa 2, descreveu cenário parecido para as cidades de Cali e Bogotá, caracterizando as “práticas informais” a partir de aspectos físicos, sociais, legais e econômicos que se aproximam daqueles identificados por João Meyer. De acordo com as pesquisas de Jaime Hernández-García, o aluguel aparece como uma estratégia econômica que responde a instabilidade e inseguridade no trabalho, ao mesmo tempo em que também se relaciona às redes sociais de apoio. 

Segundo João Meyer e Pedro Abramo, com dados de Rio de Janeiro e São Paulo, todas estas características levam a um submercado de rentabilidade superior às áreas formais das cidades, chegando a ser de três a quatro vezes mais alta. Isso tem levado, segundo os dois pesquisadores, a um processo sócio-territorial de verticalização combinado à concentração de capitais: no Rio de Janeiro, 45% dos domicílios das favelas estudadas têm mais de 3 andares e 44% dos locadores têm mais de um imóvel, enquanto em São Paulo, em Paraisópolis, esse número chega a 75%. Embora o crescimento da porcentagem de residências alugadas tenha crescido em toda a América Latina, nas áreas informais, de baixa renda, este número é sempre maior, como se viu nas  apresentações do Prof. Anderson Garcia (Pontificia Universidad Católica, Peru) e da Profa. Adriana Marcela Parias Duran (Universidad Nacional, Colômbia) com Natalia Valencia (consultora independente, Colômbia). 

Esse processo produziu em determinados territórios tipologias habitacionais específicas que correspondem a práticas de diferentes atores, transformando o mundo popular. Estas relações entre tipologias e práticas sociais foram aprofundadas entre outras apresentações do evento, como na desenvolvida pela Profa. Kristine Stiphany (Texas Tech University, EUA), ainda na Mesa 2. Com pesquisa nos bairros de Heliópolis e São Francisco (São Paulo), caracterizou este processo de verticalização e consolidação de um submercado informal de aluguéis, por meio da historicidade, em cinco tipologias encontradas ao mesmo tempo em campo, que mostram a gradual saída da favela dos moradores originais e entrada de agentes externos com práticas de mercado, como a incorporação e construção dirigida. A hipótese da pesquisadora é a de que a autoconstrução é, atualmente, uma modalidade de aluguel: as pessoas estão construindo para sair da favela, não para permanecerem ali como local de moradia.

 

Já na Mesa 1, a análise de Renato Cymbalista (FAUUSP) e Marcos Lui (Uninove) procura ampliar e complexificar as pesquisas sobre as chamadas “ocupações” de edifícios vazios no centro de São Paulo, outra tipologia que deve ser considerada neste universo. Os autores descrevem a trajetória residencial de uma família em um prédio que passou por diversas conformações distintas relacionadas ao aluguel informal – até se configurar como ocupação, sem intermediários. O trabalho revela a limitação do universo conceitual que tem orientado a produção acadêmica sobre o tema das ocupações. Com método etnográfico, o olhar dos autores se deu a partir das trajetórias e práticas de inquilinos, proprietários e intermediários, que configuram, de maneiras variadas, os atuais mercados informais de atual moradia nas áreas centrais. 

Ainda nesta Mesa 1, que explorou as formas atuais de acesso à moradia precária em áreas centrais, a arquiteta e urbanista Gislayne Felix fez uma retrospectiva histórica da presença e da legislação referente à locação residencial no Brasil, mostrando a atuação de novos atores neste submercado. Nesta perspectiva também de relacionar tipologias urbanas e seus agentes, em duas apresentações nesta mesa e em mais uma na Mesa 10, a partir da observação do centro histórico do Recife, a equipe da Profa. Norma Lacerda (UFPE) relacionou a predominância de locação informal em edifícios históricos da área com a dinâmica de implementação de políticas de preservação do patrimônio. Se, por um lado, há dificuldades, na medida em que a prática do aluguel dispersa responsabilidades de manutenção edilícia, há locais em que as características específicas deste submercado – por exemplo, elementos monopolistas de propriedade e acesso à qualidade urbana – tiveram consequências positivas, no sentido da preservação dos imóveis. Foram feitas análises quantitativas e qualitativas, com sobreposições entre tipologias de locação e diferentes zoneamentos (Mesa 10), revelando relações entre a regulação urbana, o mercado imobiliário formal e o mercado de aluguéis informais em meio à preservação do patrimônio. O tema também é compartilhado por Jaime Pujol Carabantes (PUC-Chile) que, a partir de Santiago / Chile, procura formas possíveis de intervenção pública no mercado residencial de aluguel no centro de sua cidade como estratégia de preservação patrimonial.

Estas e outras situações demonstram a dinamicidade deste submercado, que puderam ser vistas também na Mesa 5, na qual os trabalhos apresentados deram outros exemplos de criação de arranjos ligados à locação, inclusive daqueles ligados à apropriação da habitação subsidiada pelas políticas públicas pela população, seja em bairros horizontais ou em prédios do PMCMV. 

 

O Prof. Pedro Abramo, na palestra de encerramento, deu caráter crítico a esta dinâmica que tem transformado os bairros populares das cidades latino-americanas, bem como seus moradores. Segundo ele, a “inquilinização” observada nestes territórios mostra um empobrecimento generalizado: 89,7% dos locatários ganham até 3 salários mínimos (sm), sendo que, na década de 2010, aumentaram aqueles com rendimentos de até 2sm e diminuíram os de mais de 2sm, com a renda média dos compradores seguindo o mesmo perfil. Tais pessoas são principalmente jovens de até 30 anos e há uma feminização do território: enquanto no mercado formal as mulheres responsáveis pela família são 27% dos locatários, no informal elas são 56%. De maneira geral, os preços dos aluguéis são muito altos para esta faixa de renda, ocasionando um ônus excessivo de aluguel que chega a comprometer 50% da renda das famílias, especialmente entre os mais jovens e nos lares com mulheres responsáveis pela família. Outro dado apresentado pelo pesquisador, relativo ao perfil das relações de trabalho destes inquilinos, mostra que 29% deles trabalham na própria comunidade e 37% em bairro vizinhos – o que também nos informa sobre a correlação entre a relação locatícia e o emprego. 

Para finalizar, apareceram novidades em termos de atores operantes nestes mercados. O que Kristine Stiphany chamou de “nova autogestão” da periferia, está também relacionado com as juridicidades que Alex Magalhães procura observar a partir das práticas sociais – faces de potência das dinâmicas populares. Uma outra face deste processo, no entanto, está relacionada ao que Pedro Abramo denominou de “precarização do precário”: essas transformações nos mercados imobiliários informais envolvem, também, uma maior investida de grupos ligados aos circuitos do crime, com novas formas de organização sócio-política – como as milícias, ocupando vastas áreas em toda a América Latina. Segundo ele, este é um cenário novo, no qual estão relacionadas migrações internacionais, precarização das condições de habitabilidade, aprofundamento da informalização do trabalho e entrada da economia criminal na produção de territórios. São impressionantes as imagens do Peru apresentadas pelo professor, onde “traficantes de solo” fazem novos loteamentos informais, que ganham em escala, absorvendo parte da economia criminal. Neles, há desde casos onde não há nenhuma infraestrutura (chamados de “lotes turistas”, que aguardam intervenção pública posterior), até lotes em terras indígenas, onde água e luz são vendidas junto com o lote, de forma provisória, tendo como mediadores líderes indígenas, em rede com políticos locais, definindo uma estrutura a-legal (de regulação local, uma espécie de protolegislação) na qual a construção da sede de uma Universidade falsa serve como fachada legal do empreendimento.

Já observamos no Brasil a produção centralizada de territórios populares informais ligados à economia criminal, porém há ainda pouca investigação a respeito do tema, que precisa ser aprofundado, principalmente depois da queda de edifícios construídos pela milícia no bairro da Muzema, Rio de Janeiro. De qualquer maneira, o Seminário levantou uma série de elementos que nos ajudam a compreender a conjuntura atual da produção dos territórios populares latino-americanos, na qual, com certeza, o aluguel da moradia parece ser central.

* Isadora é professora da FAU-USP e pesquisadora do LabCidade.