Raquel Cunha / Folhapress

Larissa Lacerda, Isadora Guerreiro, Paula Santoro*

No dia 8 de março deste ano, data em que celebramos e reafirmamos o compromisso com a luta contra as desigualdades e opressões de gênero, a Prefeitura de São Paulo publicou o decreto nº 60.111/2021, que regulamenta a concessão do auxílio aluguel às mulheres em situação de violência doméstica no município, como previsto na lei nº 17.320, de 18 de março de 2020. A lei, de autoria de vereadoras e vereadores do PL e do PSDB, prevê a concessão do auxílio às mulheres em “extrema situação de vulnerabilidade” (renda inferior ou igual a ¼  do salário mínimo vigente) e que sejam atendidas por medidas protetivas com base na Lei Maria da Penha. Além disso, terão prioridades aquelas com filhos de 0 a 5 anos. O prazo do benefício é estipulado por 12 meses, prorrogáveis apenas uma vez, pelo mesmo período, com base em justificativa técnica. Todo o processo é realizado pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.

Apesar da importância de mecanismos de enfrentamento à violência doméstica e familiar que integrem a dimensão da moradia, a lei, tal como foi sancionada, reproduz uma série de problemas e desarranjos já amplamente apontados pelos movimentos feministas e nos estudos sobre o tema. Se nos atermos somente ao conteúdo da lei, do decreto e da portaria que a regulamentam, dois graves problemas podem ser identificados: 1. a burocratização no acesso ao benefício, que reduz a situação de violência doméstica às mulheres que possuem medidas protetivas, além de exigir comprovante de residência para um benefício que tem por objetivo, supostamente, auxiliar a mulher no acesso à moradia de forma autônoma e; 2. a segmentação dos serviços públicos, ao colocar a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania como o único órgão responsável por avaliar e autorizar a concessão do benefício, como consta no Art. 9º do Decreto 60.111/2021: “Compete à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania autuar processo administrativo e elaborar a análise e o parecer técnico-social”.

O Brasil possui uma importante rede protetiva de enfrentamento e assistência às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, composta por diferentes instituições — como as Delegacias da Mulher, os Centros de Referências [veja a lista dos locais em SP], as Casas-Abrigo, a Central de Atendimento à Mulher (180), entre outras. Contudo, a porta de entrada a todo esse aparato institucional é a denúncia, uma barreira quase intransponível para a maior parte das mulheres que tentam acessá-lo. As dificuldades no registro da denúncia decorrem de motivos diversos, que vão do medo de represálias, constrangimento, descrença na institucionalidade à barreiras econômicas e urbanas que cerceiam o acesso às instituições. Em 2019, segundo pesquisa realizada pelo DataFolha, mais da metade das mulheres que sofreram violência doméstica não registraram denúncia. Mesmo quando é feito o registro, há um longo caminho  – simbólico e físico – a ser cumprido para garantir o atendimento pela rede protetiva, e muitas acabam não seguindo adiante.

No caso da medida protetiva de urgência – critério de acesso ao benefício do auxílio aluguel – a Lei Maria da Penha prevê alguns caminhos pelos quais ela pode ser solicitada: nas delegacias (Delegacia da Mulher e Delegacia comum), no Ministério Público e nas unidades da Defensoria Pública. A juíza ou juiz tem um prazo de até 48h para decidir sobre o pedido. A medida protetiva pode ser solicitada de forma autônoma, sem a obrigatoriedade de registrar um Boletim de Ocorrência, no entanto, esse é um ponto pouco conhecido da lei, o que faz com que os pedidos sigam os caminhos da denúncia, restringindo o acesso das mulheres a ela. Desse modo, para conseguir uma medida protetiva de urgência, na prática, as mulheres enfrentam um longo percurso institucional que, por vezes, reproduz ou impõe novas situações de violência, em que terceiros vão decidir a gravidade da situação e o grau de risco ao qual a mulher está submetida, em uma verdadeira gestão de precariedades e violências que define quais mulheres terão acesso a quais serviços e benefícios — o mesmo processo que vemos acontecer, agora, com o auxílio aluguel a mulheres em situação de violência doméstica em São Paulo.

Ainda, ao colocar a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania como a única responsável pela avaliação e concessão (ou não) do benefício, a lei fragmenta a política de enfrentamento e assistência às mulheres em situação de violência doméstica, que vão precisar recorrer a mais um órgão em sua já extensa “rota crítica” em busca da garantia de direitos. Além disso, os locais de atendimento dessa secretaria não são suficientemente capilarizados no território, o que faz com que as mulheres tenham que fazer grandes deslocamentos, o que nem sempre é possível dada sua vulnerabilidade. Nesse sentido, seria mais plausível que as profissionais dos equipamentos que compõem a rede de atendimento socioassistencial e de saúde, responsáveis pelo atendimento e acompanhamento na ponta, tivessem protagonismo no processo, sendo autorizadas a emitir o parecer favorável. Há um Projeto de Lei na Câmara, de autoria da Bancada Feminista, que prevê esta necessária desburocratização do processo de requisição do auxílio, diminuindo documentação e ampliando as possibilidades de entrada na rede assistencial.

Esse tema ganha ainda mais relevância diante da pandemia, que parece ter acirrado todos os processos espoliativos. Desde o início do período de isolamento social, vimos o aumento dos casos de violência doméstica: apenas em São Paulo, 24 mil mulheres buscaram atendimento ao longo de 2020 – um número que tende a ser muito maior se pensarmos em todas as mulheres que não chegam a buscar ajuda.  Além disso, grande parte das mulheres se viu ainda mais sobrecarregada pelos trabalhos domésticos e de cuidado, em alguns casos, tendo que deixar o emprego para garantir os cuidados familiares. Soma-se ainda a escalada do desemprego e o corte do auxílio emergencial (que retorna em 2021 com valores muito mais baixos), que impõe restrições cada dia mais severas sobre as condições de reprodução da vida.

Em texto recente, falamos sobre a feminização do déficit habitacional brasileiro que, em 2019, foi composto por cerca de 60% de mulheres vivendo em condições precárias de moradia. A pandemia, e todas as suas consequências sociais e econômicas, recai sobre essas mulheres, acirrando as situações de insegurança habitacional, incluindo aquelas relativas aos despejos relacionados à violência doméstica, nos termos de Raquel Ludermir.

Sobre esse contexto mais amplo é possível entrever outros problemas decorrentes da legislação paulista sobre o auxílio aluguel às mulheres em situação de violência. Já alertamos em outro momento acerca da geração de novas vulnerabilidades acionada pelo auxílio aluguel: sem nenhum mecanismo de vistoria no imóvel ou proteção contratual de aluguel, o simples pagamento de um recurso mensal acabará levando a beneficiária a situações de maior insegurança habitacional. Ela certamente recorrerá ao aluguel informal em áreas precárias, nas quais precisará apresentar garantias ao locador (caução fiança) ou se submeter aos arranjos específicos de cada negociação. Tais arranjos, muitas vezes, envolvem a proibição de crianças, ou um valor mais alto de locação pela existência delas.

Além disso, o valor do auxílio aluguel (R$400) não é suficiente para alugar um cômodo nem nas áreas mais precárias da cidade e, portanto, a beneficiária terá que arranjar rendimentos extras para pagar este aluguel, que antes ou não pagava, ou dividia com o companheiro. Ainda é somado a isso os custos de água e luz, pelo menos, além de altas taxas de atraso no pagamento do aluguel. É uma situação que acaba a colocando em insegurança financeira, recaindo em endividamento seja em dinheiro, seja em serviços prestados de maneira gratuita para o locador. Ou seja, em qualquer situação, isso significa sair de uma situação de violência doméstica para muitas outras, aumentando a vulnerabilidade desta mulher que precisa de proteção.

Neste sentido, alertamos que, embora a legislação recentemente aprovada pareça trazer ganhos imediatos às mulheres vítimas de violência doméstica, ela pode, ainda que conquistada após inúmeros percalços burocráticos, trazer mais problemas a médio prazo decorrentes da insegurança habitacional acionada pelo auxílio aluguel. Soluções de moradia mais coletivas deveriam ser consideradas, seja pelos movimentos feministas, seja pelo poder público. Alternativas seriam, por exemplo, a locação de casas de vários cômodos mantidas pelo poder público e autogeridas pelas próprias mulheres ou por Organizações Sociais e movimentos populares; ou ainda a expansão do parque público de locação, que já existe na cidade, e que já conta com experiência de atendimento à vulnerabilidade específica (moradores em situação de rua) e que poderia agregar este atendimento especializado de maneira compartilhada com a rede de assistência social. Desta maneira, sairíamos da situação de resolução das vulnerabilidades de forma individual, agregando o apoio de políticas públicas e gerando mobilização social e engajamento das mulheres atendidas, o que pode ser um processo ativo de saída da situação de violência doméstica rumo a novos horizontes, com autonomia e uma nova rede de sociabilidade e luta.

Para mais informações sobre a rede de proteção e acolhimento à mulheres em situação de violência doméstica e familiar, ver:

_ Cartilha Violência Contra as Mulheres: Conhecer para combater!, organizada pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e pela Casa de Referência Helenira Preta.

_ Cartilha Lei Maria da Penha: sua vida começa quando a violência termina, organizada pelo Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

* Doutoranda na FFLCH, pesquisadora do LabCidade; professora e pós-doutoranda na FAU-USP, pesquisadora do LabCidade; Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Agradecemos à Julia Gimenes pela leitura e comentários cuidadosos.