Agentes Comunitários de Saúde em atividade. Foto: Flávia Garofalo Cavalcanti

Por Flávia Garofalo Cavalcanti e Isadora Marchi de Almeida*

A intensidade de propagação de um agente infeccioso depende diretamente do meio em que ele se encontra. No caso do coronavírus não é diferente. As condições ambientais, ou seja, o modo de vida dos seres humanos, seus hábitos, modos e formas de morar serão determinantes para o crescimento ou achatamento da curva de contágio do coronavírus. Dessa forma, conhecer a diversidade dos territórios e das pessoas que os habitam é fundamental para agir rápida ede forma coerente contra a Covid-19.

Ainda que esta premissa devesse valer para boa parte das políticas públicas, não apenas em tempos de pandemia, são vários os relatos sobre dificuldades de o Estado agir de modo eficaz no combate à Covid-19 em territórios populares, como por exemplo nas favelas, áreas encortiçadas e periferias brasileiras. Mas as políticas de saúde pública já  atuam territorialmente, a partir de articulações locais por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF) e da atuação dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS).

Foi o Sistema Único de Saúde brasileiro, criado na década de 1990 que reorientou o modelo assistencial promovido pelo Ministério da Saúde estabelecendo o modelo conhecido como “atenção primária de saúde”, porta de entrada do SUS nos municípios. Neste momento é criado o Programa de Saúde da Família e introduzida uma nova figura no corpo técnico das equipes de saúde, o Agente Comunitário de Saúde (ACS).

Antes, o modelo clínico centrado em hospitais e na intervenção terapêutica armada (cirúrgica e medicamentosa) era prioritário. Com a reestruturação, o modelo adotado preferencialmente passa a ser o epidemiológico, centrado no ambiente, na qualidade de vida e na relação de uma equipe de saúde multiprofissional com a comunidade – ou seja, a dimensão territorial tornou-se fundamental para as políticas de saúde. No combate à Covid-19 também é urgente incorporar ações territorializadas e explorar as possibilidades abertas pelo SUS e pela ação dos ACS, tanto para subsidiar ações de efeito imediato quanto a longo prazo.

Diferente dos demais componentes da equipe de saúde da família, o ACS não precisa ter formação na área da saúde, mas se destaca por ser morador da área de atuação da equipe. Seu trabalho é considerado uma extensão dos serviços de saúde dentro da comunidade em questão; é quem está mais próximo do território. Dentre suas principais funções estão: ter maior conhecimento do território de atuação; fazer o cadastramento e acompanhamento das famílias com o registro das variáveis que influenciam o estado de saúde (como a situação de moradia, alimentação, etc.); a realização de visitas domiciliares; ações de promoção e vigilância em saúde (busca ativa); atenção e estímulo às reivindicações da comunidade e integração entre o saber popular e o conhecimento técnico.

Agentes Comunitários de Saúde em atividade. Foto: Flávia Garofalo Cavalcanti

Cada Unidade Básica de Saúde, com suas equipes de saúde da família, traça o perfil sanitário da sua área de atuação. Este perfil é determinado pela dinâmica de ocupação da cidade ao longo do tempo, a forma como ela se deu e a rede de interações entre cada região através das atividades econômicas, de circulação, de equipamentos públicos e privados. A distribuição espacial das UBS é pensada para estar de acordo com o perfil sanitário que apresenta maior necessidade de atuação, como as áreas de alta concentração populacional, a exemplo de muitas favelas e periferias de nossas cidades. São nestes locais que o comportamento da curva de contágio do Coronavírus ainda é pouco conhecido, o que preocupa as autoridades em saúde devido à precariedade do ambiente construído, à falta geral de recursos e a sobreposição com outras doenças historicamente concentradas nas favelas.

Um exemplo importante para pensar o caso brasileiro é o da tuberculose, que tem cara e casa bem definidas. De acordo com o relatório global sobre a tuberculose de 2019 elaborado pela Organização Mundial da Saúde, nosso país ocupa 27ª posição entre os 30 países que concentram 87% da incidência global de tuberculose, sendo que a trajetória nacional de redução dos casos desde 2010 sofreu uma reversão e o número de casos voltou a subir entre 2016 e 2018 . A cidade do Rio de Janeiro é a primeira do país em número de novos casos da doença e só no ano passado teve 6.293 novos pacientes de tuberculose. A maioria desses pacientes são moradores de favelas da região Norte da cidade (Complexo do Jacaré, Manguinhos, Mangueira e outros).

A tuberculose é uma doença pulmonar, causada por um bacilo cuja transmissão se dá por partículas expelidas pela fala, tosse ou espirro. Uma vez presente no ar, o bacilo da tuberculose não resiste mais de 5 minutos exposto à luz do sol. Mas em muitas de nossas favelas, adensadas, o sol direto praticamente não entra, nem mesmo ao meio-dia. As casas no nível da rua, aquelas que primeiro foram construídas e que hoje dão acesso a mais 2 ou 3 andares de casas, não recebem iluminação e ventilação suficientes, tornando-se altamente suscetíveis à proliferação de doenças infectocontagiosas como a tuberculose.

Os Agentes Comunitários de Saúde têm papel chave no enfrentamento da tuberculose no Brasil. O tratamento, oferecido exclusiva e gratuitamente pelo SUS, dura seis meses e são os ACS que levam o medicamento até a casa do paciente e devem observá-lo ao tomar a medicação. Os ACS, por meio do instrumento de territorialização (espacialização dos dados em mapas cartográficos), das visitas domiciliares, do caminhar nas ruas e ao conhecer pessoalmente as pessoas que muitas vezes são suas vizinhas, conseguem identificar quais são as áreas de maior incidência de tuberculose, sendo que normalmente os casos concentram-se em uma região específica, notadamente a mais adensada e com construções mais precárias.

A identificação da parcela da população mais vulnerável à tuberculose é ainda mais importante no contexto de pandemia. Isto ocorre pois a tuberculose é um agravo pulmonar e a Covid-19 ataca os pulmões, tornando a combinação dessas doenças preocupante, o que tem sido denunciado em busca de medidas para redução dos riscos de contágio e melhoria das condições das áreas mais vulneráveis. Soma-se a tudo isso o fator agravante de que a tuberculose tem grande prevalência em pacientes HIV positivo e que no Brasil entre 2010 e 2019 tem aumentado o número de casos de tuberculose na população encarcerada.

Equipe de ACS da UBS de Jardim Campinas avisando os moradores de medidas para conter a Covid-19, frame de um vídeo verdadeiro que circula pelo WhtasApp

O exemplo da tuberculose é importante para situar como a ação territorializada dos Agentes Comunitários de Saúde, principalmente por meio da busca ativa, tem sido fundamental na política de saúde para informar, prevenir, combater e atender regiões em que muitas vezes a percepção geral é de ausência do Estado. No contexto de pandemia pelo coronavírus, com os devidos cuidados e orientações aos profissionais de saúde e ACS, o fortalecimento de iniciativas pautadas por esta forma de atuação poderia ser importante para proteger áreas mais vulneráveis,  e até outros países, como o Reino Unido, têm elaborado propostas de enfrentamento à Covid-19 baseadas neste modelo brasileiro. A atuação de agentes no território poderia identificar mais precisamente áreas com maior concentração de grupos de risco, pontos de maior chance de contágio, áreas que demandam maior atenção como apontado acima, a fim de subsidiar uma política de saúde pautada pelo atendimento dos grupos mais vulneráveis.

Atualmente boa parte destas informações obtida de modo direto no território não é usada para alimentar bases de dados ampliadas e compartilhadas entre setores da administração pública, restringindo-se a subsidiar decisões das equipes de saúde diretamente responsáveis por uma área reduzida, isto em contexto no qual existe a possibilidade de subnotificação de casos e mortes suspeitas e ainda não se sabe como este risco pode impactar – ou já ter impactado – regiões com menor acesso à rede de saúde e à possibilidade de testagem. O trabalho de identificação de áreas críticas e diálogo direto no território feito pelos ACS poderia subsidiar ações e políticas de efeito mais imediato na prevenção e no combate à Covid-19, mas também melhorias em longo prazo, como soluções definitivas de saneamento, ou até articular-se a políticas de enfrentamento à violência contra a mulher que tem crescido no contexto de isolamento social.

Agentes Comunitários de Saúde em atividade. Foto: Flávia Garofalo Cavalcanti

Parece urgente repensarmos como criar outros meios para dar maior legibilidade a estes territórios e seus ocupantes, mas todo o cuidado é necessário para que não sejam reproduzidas medidas de monitoramento que violem privacidades e direitos, nem a adoção de políticas autoritárias, violentas ou excludentes que resultem em violações de direitos humanos e no isolamento desassistido. Ou seja, a utilização de dados e informações a partir de olhares territorializados coloca dois cenários opostos – um pelo fortalecimento de articulações locais e outro pela adoção de políticas autoritárias – e é imprescindível que o caminho a ser tomado seja o da articulação para políticas intersetoriais pautadas pela equidade e inclusão.

Buscar um olhar positivo, este momento pode nos servir para repensar possibilidades de fortalecimento de arranjos locais e articulações comunitárias, além de relações entre Estado e comunidade que permitam ações para reduzir desigualdades estruturais, a partir de atores locais, a exemplo dos Agentes Comunitários de Saúde, e olhares sobre as ausências e as potencialidades de cada território. Com a articulação entre escalas, leitura dos territórios e comunicação direta, devemos refletir sobre como superar o paradoxo da necessidade de distanciamento para criar novas redes de proximidade.

* Flávia é arquiteta e urbanista, mestre pelo IPPUR/UFRJ. Pesquisou as relações de mediação entre saúde, arquitetura e cidade por meio da figura do agente comunitário de saúde na zona norte do Rio de Janeiro. Hoje leciona na Universidade São Francisco. Isadora é arquiteta e urbanista, mestranda na FAUUSP e pesquisadora do LabCidade.