Por Benedito Roberto Barbosa, Beatriz Kara-José, Renato Abramowicz Santos e Talita Anzei Gonsales*; Débora Ungaretti e Raquel Rolnik**

Duas ações diferentes, uma movida pela Defensoria Pública e outra pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, tiveram decisões liminares favoráveis na terça-feira desta semana, dia 02 de dezembro, pela suspensão das remoções forçadas de moradores e comerciantes, e das demolições de edifícios que estão acontecendo em duas quadras na região dos Campos Elíseos, no centro de São Paulo. São vitórias importantes, mas não são definitivas.

Desde 2017, moradores e comerciantes de dois quarteirões conhecidos como quadras 37 e 38 na região da “cracolândia”, no bairro do Campos Elíseos, centro de São Paulo, estão ameaçados de remoção por uma grande intervenção urbanística viabilizada por meio de uma Parceria Público-Privada, a PPP Habitacional promovida pelo governo do estado em parceria com a prefeitura. São pessoas que desde então estão ameaçadas de perder suas moradias e formas de trabalho para dar lugar a novos apartamentos, aos quais dificilmente terão acesso, por não se enquadrarem às exigências socioeconômicas e burocráticas estipuladas na modelagem da PPP.

Com a promessa vaga por parte da prefeitura de um atendimento definitivo em um futuro incerto, a única opção oferecida concretamente é o auxílio aluguel de R$ 400, insuficiente para permanecer vivendo no centro da cidade – por conta da complexidade e heterogeneidade sociais e urbanas da região, ainda existem opções e arranjos de moradia que se encaixam na realidade dos atuais moradores, que com a expulsão dificilmente vão encontrar um local de moradia acessível no centro de São Paulo por quatrocentos reais.

Mesmo o auxílio aluguel não está garantido para todos. Para aqueles moradores que chegaram depois do cadastramento, iniciado em 2017 e já fechado, nem isso está em perspectiva. No máximo há a oçpção da oferta de vaga em albergue, o que gera revolta e indignação em quem pode perder sua casa agora em meio à pandemia. Pois, depois de anos aguardando mais diálogo e informações por parte da prefeitura, de uma série de questionamentos protocolados pedindo por esclarecimentos sem nenhuma resposta, de um ano inteiro sem reunião do Conselho Gestor, criado para discutir e aprovar qualquer intervenção na área como determina o Plano Diretor municipal, foi em plena pandemia que a prefeitura e a COHAB resolveram ter pressa para concluir as desapropriações dos imóveis e retirar todo mundo que mora, trabalha e circula por ali, no momento em que ficar em casa é um dos poucos meio comprovados de proteção à saúde e à vida.

De acordo com relatos de moradores, a prefeitura vinha assediando-os por meio de visitas de funcionários informando que todos deveriam desocupar os imóveis até o dia 10 de dezembro.

Diante dessa situação, sem que houvesse ainda decisão judicial para cumprimento das imissões na posse nos processos de desapropriação e com remoções e demolições administrativas ocorrendo pelas quadras, foi que — junto de imensa mobilização de moradores/as, conselheiros/as, parceiros/as do território e entidades — Defensoria Pública e o Ministério Público viram a necessidade de barrar tais ilegalidades judicialmente. Com ações distintas, que discutem diferentes ilegalidades e sob perspectivas jurídicas diferentes, o que reforça as inúmeras arbitrariedades que vinham acontecendo, pediram a suspensão das remoções e demolições ilegais e o atendimento dos direitos de quem mora e trabalha na região.

Foi então que na manhã do dia 02 de dezembro, os moradores e todos seus parceiros/as receberam com muita alegria e alívio a decisão liminar favorável do juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública, na ação movida pela Defensoria Pública de São Paulo. Com essa decisão liminar — que não é definitiva e ainda cabe recurso por parte do poder público –, a prefeitura está obrigada a: comprovar o cadastro habitacional de todos, atendendo não só as 190 famílias cadastradas inicialmente, mas também as mais de 300 famílias morando atualmente na área e que não foram cadastradas; apresentar um plano de atendimento habitacional, assistencial e de saúde; demonstrar os planos e cronogramas; e responder os questionamentos feitos pelos conselheiros representantes da sociedade civil no Conselho Gestor há mais de dois anos.

Como se não bastasse essa boa notícia para os moradores, no final do dia, tivemos mais uma. Na ação movida pelo Ministério Público, o juiz da 4ª Vara da Fazenda Pública determinou  – em mais uma decisão liminar, e que portanto não é definitiva  – que a prefeitura deve elaborar e apresentar um projeto detalhado da intervenção, atendendo procedimentos do Plano Diretor, que deve ser aprovado pelo Conselho Gestor das quadras.  Destacou, ainda,  que “as remoções e imissões de posse estão sendo implementadas no contexto da Pandemia Covid-19, sendo que as próprias autoridades sanitárias, tanto municipais, quanto estaduais, determinaram maior rigor nas medidas de isolamento e circulação de pessoas”. Assim, o juiz proíbe que prefeitura e COHAB removam moradores das quadras 37 e 38 enquanto não for aprovado pelo Conselho Gestor um plano de urbanização de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) e enquanto perdurar as “regras sanitárias e recomendações médicas de isolamento social decorrentes da Pandemia”.

Foto: Renato Abramowicz Santos

Por fim, transcrevemos abaixo a íntegra de uma carta escrita por um morador (imagem acima) cuja família vive há mais de 40 anos nas quadras, entregue para o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que, no mesmo dia 02 de dezembro, em comitiva do CNDH e com representantes de moradores e entidades que moram e atuam na região, fez uma visita, conversou e ouviu relatos e denúncias de pessoas que moram, trabalham e circulam pela região da Luz/Campos Elíseos/cracolândia:

“Olá, venho por meio desta carta, expressar meus direitos e dos demais moradores das quadras 37 e 28. O que a prefeitura está fazendo conosco é injusto, já passamos uma vida inteira pagando aluguel de algo que não é nosso, não estou falando de dias nem de meses e sim de anos. Nada mais justo do que nos colocar nos edifícios que já estão construídos, pois a quantidade de pessoas não é tão grande, ainda sobrará lugares nos prédios. Ou ao menos nos fornecer as cartas de crédito, nos dar bolsa aluguel é injusto. Ainda mais com um valor de R$ 400. Não dá pra alugar nem um quarto de pensão. Isso é desconexo: sairmos do aluguel e voltar para o aluguel; às vezes me pergunto para que votar nas eleições, pois ao invés de melhorar, as coisas pioram. Como uma família vai morar em um quarto de pensão? Nossos idosos recebendo um salário mínimo e ainda ter que desenterrar pra pagar aluguel. O governo tem que entender que comemos, nos vestimos, pagamos prestações de móveis, cadê a democracia e a igualdade social? Não queremos bolsa aluguel, estamos cansados; queremos nosso sonho de ter e pagar algo que é nosso”

Foto: Renato Abramowicz Santos

*Conselheiras e conselheiros representantes das entidades no Conselho Gestor das quadras 37 e 38, Campos Elíseos.
*Pesquisadora e Coordenadora do LabCidade;