Paulo Guereta – 8.mar.19/Photo Premium/Folhapress

Por Fernanda Fulan de Souza e Mariana Duran Meletti*

Qualquer ação ou conduta, motivada pelo gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher caracteriza uma forma de violência contra as mulheres. O combate aos abusos sofridos e ao feminicídio – expressão para designar os assassinatos de mulheres que teriam sido provocados pelo fato de serem mulheres – ganhou, nas últimas décadas, regulação e institucionalidade. Comemorou-se a aprovação da Lei Maria da Penha (Lei Federal n. 11.340/2006) e a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (BRASIL, 2011), consequentemente foi organizada uma rede de atendimento a mulheres vítimas de violência. Esta rede protetiva baseia-se em diretrizes claras para a prevenção e combate à violência contra as mulheres, e inclui medidas de assistência às mulheres em situação de violência. Assim, foram inaugurados Centros de Referência, Delegacias da Mulher, Casas-Abrigo, Defensorias da Mulher e Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher em diversos municípios e, também, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180).

A principal porta de entrada para a rede protetiva é a denúncia, realizada em delegacias gerais ou delegacias da mulher. Entretanto, apesar das conquistas associadas ao enfrentamento do problema o desafio de denunciar a violência ainda é imenso.

Estudos indicam que uma grande parcela de mulheres em situação de violência prefere ocultar a agressão por medo, coação, constrangimento, descrença nos mecanismos públicos de segurança e justiça entre muitos outros fatores. A pesquisa de 2019 realizada pelo DataFolha e pelo Fórum de Segurança Pública mostrou justamente que a maioria das mulheres não formaliza denúncia contra seus agressores, por motivos variados que vão desde a descrença na efetividade da lei em garantir sua proteção ao medo de piorar a situação em que já se encontram.

Portanto, os desafios da denúncia são culturais, emocionais, subjetivos, econômicos e envolvem também desafios urbanos!

Para começar são poucas as delegacias especializadas de mulheres e menos ainda dentre elas as que são 24 horas em São Paulo.


Mapa interativo (visualização completa aqui) com delegacias de São Paulo e área de abrangência de 20 minutos de caminhada. Fonte: SOUZA, F. F.; MELETTI, M. D. Diagnóstico de acessibilidade das mulheres vítimas de violência à rede protetiva no município de São Paulo e proposta de intervenção em distritos representativos. Trabalho final de graduação apresentado à Escola Politécnica, 2019. Elaboração: Ulisses Castro, LabCidade, 2020.

Atualmente, apenas sete delegacias da mulher funcionam durante a madrugada, localizadas nos bairros da Saúde, Freguesia do Ó, Tatuapé, Campo Grande, Itaquera, Jardim Marília e no Centro da cidade. Também não é possível encontrar esta informação em portais oficiais do governo, o jeito mais fácil seria ligar para o 180 e informar a sua localização para, então, ser direcionada à delegacia especializada mais próxima.

Após fazer a denúncia na delegacia ainda há uma sequência de procedimentos que exigem inúmeras viagens à várias instituições, que funcionam principalmente em horário comercial, distantes dos lugares onde a violência foi cometida ou da casa da vítima, pouco servidas por rede de mobilidade, ou exigindo gastos consideráveis com transporte, entre outros tantos aspectos da vida urbana e cotidiana que dificultam o processo – como onde deixar os filhos, como visitar todos estes lugares em horário comercial se a pessoa trabalha no mesmo horário, etc

Para se ter uma ideia da via crucis, após a denúncia na delegacia pode ser indicada a realização de exames para aferir as violências (exame de lesões corporais ou exame de corpo de delito) em institutos de saúde especializados em fazer perícias, como o Instituto Médico Legal. A vítima ainda pode pedir uma medida protetiva na Justiça para afastar o agressor, que em São Paulo pode ser requerida em alguns centros – Centros de Cidadania da Mulher (CCM), Centros de Referência à Mulher (CRM) e nos Centros de Defesa e Cidadania da Mulher (CDCM), cujas diferenças não são explícitas para que a vítima decida para onde é melhor se encaminhar. A decisão de afastamento do agressor pode demorar, exigindo que a vítima vá à Defensoria ou Ministério Público para pressionar os juízes por uma decisão rápida, e depois à Justiça, para obter a liminar com a solução adotada. Tudo isso idealmente em varas especializadas ou núcleos de atendimento à mulher.

Se a vítima não tiver advogado, a Defensoria Pública deve ser procurada, pois será aberto um processo jurídico que terá vários momentos, um deles de depoimento da vítima. Também é possível acessar serviços de assistência social que envolvem atendimentos nos mesmos centros citados acima para o acompanhamento cotidiano dos casos, ou ainda casas-abrigo, em um lugar sigiloso, que mantém a vítima longe do agressor. E para serviços de saúde voltados ao atendimento de casos de violência sexual é possível receber acompanhamento médico em São Paulo no Hospital Pérola Byington, um dos únicos especializados e que atende ao Sistema Único de Saúde (SUS). O organograma abaixo simplifica uma das opções de trajetória das mulheres vítimas de violência.

Organograma dos procedimentos de denúncia. Fonte: SOUZA, F. F.; MELETTI, M. D., 2019, p. 23.

A acessibilidade a esta rede é complexa e composta por diferentes instituições espalhadas pela cidade que atendem às demandas específicas, por isso é importante que não tenha redução da frequência e das linhas de transporte público coletivo, como já tratamos em post anterior.

Este tema foi objeto de análise em nosso trabalho final de graduação em Engenharia Civil e Arquitetura e Urbanismo da USP (Programa de dupla formação POLI-FAU), desenvolvido no âmbito do Departamento de Engenharia de Construção Civil (PCC), com orientação da Prof. Dra. Karin Regina de Castro Marins. O trabalho foi apresentado em dezembro de 2019 e propôs um indicador de acessibilidade às delegacias comuns e das mulheres no município de São Paulo, ou seja, as portas de entrada desta rede protetiva. Este indicador considera fatores como a quantidade de mulheres, a renda per capita e o índice de violência contra a mulher nas diferentes regiões do município de São Paulo, e também analisa a localização das delegacias gerais e da mulher, diferenciando-as de acordo com o horário de atendimento, e compara o acesso entre elas por meio de transporte público, carro ou caminhada.

A acessibilidade, neste caso, foi comparada a partir da quantidade de delegacias gerais ou da mulher que podem ser acessadas a partir do centro de uma região para um limite de tempo estipulado. Ou seja, saindo do centro de um distrito no município de São Paulo, quantas delegacias um pedestre consegue alcançar em 20 minutos de caminhada ou um carro consegue alcançar em 30 minutos de trajeto por exemplo (ver mapa interativo deste post).

A leitura mostrou primeiro, que há denúncias por toda a cidade. A espacialização do indicador de agressão a mulheres do Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo de 2018, evidenciou as regiões da cidade, como os distritos Jardim São Luís, Jardim Ângela e Itaim Paulista, que possuem muitas denúncias de ocorrências de violências – o que não significa que são mais violentos, pois há muita subnotificação por toda a cidade. Estas e outras regiões do município foram estudadas e existem áreas nas quais a demanda por delegacias é maior e os equipamentos são escassos ou de difícil acesso, considerando gastos financeiros e o tempo de transporte até o local.

Se esta situação piorar, haverá um retrocesso em termos de denúncias e consequentemente de cuidados que acontecem após a denúncia!

O cenário mundial atual de isolamento social e de incentivos ou até restrições governamentais para a permanência da população em suas residências traz novas preocupações relacionadas ao tema. Os casos denunciados de violência doméstica cresceram em São Paulo e em diversas cidades do Brasil desde o início da quarentena. Infelizmente, o combate a pandemia obriga, muitas vezes, a convivência entre vítimas e agressores e retira das mulheres em situação de violência o apoio de familiares e de amigos. A situação ainda é agravada pelo aumento da dificuldade das mulheres de deslocarem-se pela cidade para cumprimento de todas as etapas descritas anteriormente que envolvem o processo de denúncia, justiça, assistência e proteção nos casos de violência contra a mulher.

Em suma, as mulheres podem estar mais expostas a situações de violência dentro de suas próprias casas e para enfrentar o problema e denunciar, precisam colocar em risco sua saúde pessoal, desrespeitando as medidas da quarentena, enfrentando as reduções de oferta de transportes públicos e os horários reduzidos de atendimento de diversos órgãos governamentais. Não parece ser hora, portanto, de redução de serviços públicos que podem diminuir à violência contra a mulher.

* Fernanda é graduada em Engenharia Civil pela POLI USP, no Programa de Dupla Formação POLI-FAU, com habilitação em Arquitetura e Urbanismo. Trabalha na P3urb estruturando projetos imobiliários, privados ou público-privados.
Mariana é graduada em Engenharia Civil pela POLI USP, no Programa de Dupla Formação POLI-FAU, com habilitação em Arquitetura e Urbanismo. Trabalha com a análise de dados em uma empresa de tecnologia brasileira, Wildlife Studios.