Gisele Brito*

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Intervenção artística do grafiteiro Mundano na Represa da Cantareira. Foto: Divulgação/Instagram

Apesar de ser o único recurso natural que se renova na terra através de um ciclo, a água doce e limpa é um bem cada vez mais raro. Mudanças climáticas, poluição, desperdício e a falta de governança são alguns dos motivos apontados pela jornalista Maura Campanili e a urbanista Marussia Whately, autoras do livro O Século da Escassez. Uma nova cultura de cuidado com a água: impasses e desafios para explicar as razões desse cenário.

Nessa entrevista Marussia fala sobre a necessidade de integração entre os atores envolvidos nas diferentes frentes de ação onde a água é elemento central. Marussia é especialista em recursos hídricos e coordenou no Instituto Socioambiental o Programa Mananciais, cujo objetivo era recuperar represas e nascentes de rios em São Paulo. Desde 2014 ela é uma das principais vozes do debate sobre a crise hídrica e de abastecimento que a cidade e sua região metropolitana vivenciam. Uma situação que apesar de parecer remediada, inclusive pela postura vangloriosa do Governo do Estado, está longe de ser resolvida.

Marussia Whately – O que é o nexo água-energia-alimento, tratado no livro, e como ele impacta a disponibilidade de água?

Esse nexo vem sendo muito colocado em temas relacionados à discussão de mudanças climáticas. Não se produz alimentos sem água. A produção e transporte deles demandam energia e a produção de praticamente todos os tipos de energia demandam água, até mesmo a energia nuclear, que precisa de água para resfriar. Então o nexo entre essas três coisas é muito importante e dá o alerta para a necessidade de integração das frentes diferentes que atuam entre energia, alimentos e com a água.

Hoje essa integração não ocorre no Brasil?

No Brasil você tem um grande controlador do sistema elétrico que não necessariamente tem integração do ponto de vista de tomada de decisões com o setor de recursos hídricos, saneamento e o setor de abastecimento de água nas cidades. No Sudeste do Brasil, como na Bacia Paraíba do Sul, onde há várias hidrelétricas, essa integração nos momentos de emergência por causa de escassez de água é fundamental e hoje ela ainda não ocorre.

Podemos caracterizar como uma crise o que ocorreu em São Paulo em 2014 quando o sistema Cantareira e Alto Tietê atingiram os menores níveis de suas histórias ou é uma situação continua a ser enfrentada?

Em São Paulo nós tivemos uma intensificação de uma situação de crise hídrica que é existente. Somos uma região densamente habitada, com grande quantidade de usos da água, tanto doméstico quanto industrial e, mesmo na porção leste da cabeceira do Tietê, de irrigação para agricultura.

Na nossa avaliação, a crise é resultado de uma combinação de fatores. Existe um modelo de gestão centralizado, com foco em buscar água cada vez mais longe, com investimentos defasados alinhado ao fato de nós termos um alto grau de degradação das águas, impossibilitando até o uso para abastecimento, como ocorre na Represa Billings; termos uma falta de transparência e controle social; a falência dos comitês de bacia; e a inexistência dos conselhos municipais de saneamento.

Ou seja, é uma região de conflito com alto estresse hídrico. E isso tudo foi intensificado por um evento climático extremo, o que mostrou a grande incapacidade de se lidar com emergências, a falta de disposição do governo estadual de jogar limpo e trabalhar de maneira transparente.

Essa crise foi superada?

Agora, em 2016, com a recuperação das represas, a leitura que fazemos é que o que passou foi uma parte da crise, que foi a crise de abastecimento. A crise hídrica continua. A gente continua tendo 30% no mínimo de perda de água. Continuamos tendo, praticamente, todos os rios sujos. Continuamos tendo uma desigualdade muito grande na política tarifária. Temos ainda um déficit enorme de coleta e ainda maior de tratamento de esgoto. Tem toda a questão de macrodrenagem e de não trabalhar de forma otimizada as águas da chuva para fins não potáveis.

Então a crise hídrica, da água em geral, continua. E, na minha opinião, está até intensificada porque, na medida em que vieram as chuvas,  o próprio governo do estado começa a se vangloriar pela superação dela, quando o que foi superado, na verdade, foi a questão do abastecimento e o problema financeiro da Sabesp. A gente ainda está muito longe de superar a crise.

A crise de abastecimento, como foi a que nós tivemos, ocorreu por uma estiagem, mas essa combinação de fatores depreciou de tal forma os mananciais que abastecem a região metropolitana que nós tivemos que passar por medidas como a redução de pressão, que é outro nome para racionamento. Essa crise de abastecimento faz parte de uma crise hídrica. Mas não é a crise hídrica. Resolver a questão do abastecimento porque choveu não é resolver a questão hídrica.

Então apesar da sensação de que o pior passou ainda não estamos em bonança?

A gente está em uma situação melhor do que estávamos no ano passado e retrasado em termos de armazenamento de água, mas não é muito melhor. A gente tem menos água hoje do que tinha em 2013, antes da estiagem. Continuamos em situação de alta vulnerabilidade. Não há superação do problema. E, ao mesmo tempo, quando olhamos a questão da água como um todo e não só como abastecimento, a gente tem graves problemas de contaminação dos rios, dos mananciais e nada disso mudou.

Aliás, a tendência é até piorar porque a própria Sabesp, ao sair fortalecida da crise, apresenta um plano de investimento para os próximos anos que consiste em investir emergencialmente em ampliar fonte de água para a região metropolitana. Isso sem que a gente tenha feito uma discussão se precisamos de toda essa água. Ao mesmo tempo, diminui o investimento em esgoto, que é algo que a gente precisa realmente encarar e resolver. É totalmente incompatível com o século 21 continuar jogando esgoto em rios e represas, ainda mais aquelas que usamos para abastecimento.

No livro você afirma que o problema da falta de água em um lugar, não é só daquele lugar. É sistêmico. E também menciona o desmatamento na Amazônia como um fator que pode ter influenciado a escassez de água em São Paulo.  Qual o percentual de responsabilidades das mudanças climáticas e da governança para os cenários críticos da água em São Paulo e no país?

Uma coisa são mudanças climáticas, outra coisa é o impacto de desmatamento. As tendências mostram que as temperaturas do planeta estão aumentando. Estamos batendo em 2016 mais um recorde de ano mais quente. Cenários do IPCC mostram, por exemplo, que se a tendência continuar dessa forma, a gente corre o risco de aumentar a temperatura média da terra em dois graus, até mais que isso. Existe hoje uma grande mobilização pós COP Paris para manter esse aquecimento em um grau e meio.

Daqui até essas mudanças acontecerem, o que se tem projetado é que aumentem os eventos climáticos extremos.  Uma coisa é mudança no clima como um todo, outra coisa são os eventos climáticos extremos, que foi o que aconteceu aqui em São Paulo. Tivemos uma estiagem muito fora da curva.

O que se olha de modelos climáticos para o Brasil e para o Sudeste é a tendência de aumento em frequência é intensidade de períodos de estiagem e de períodos com muita chuva. Então a tendência é que chova em um dia a chuva do mês e no resto do mês fique seco.

Isso requer que a gente comece a incorporar todas as políticas, principalmente àquelas relacionadas à água. Não se pode desassociar água de meio ambiente e água de clima. A gente vai sentir aos impactos da mudança do clima principalmente por meio da água , seja pela escassez, seja pela abundância.

Mas é  importante que se inicie uma série de procedimentos de revisão das nossas políticas de ajuste de rumos e de adaptação para lidar com um clima que é diferente daquele que estamos acostumados. No livro a gente não coloca categoricamente  o vínculo Amazônia com a crise de São Paulo porque não tem comprovação científica, mas tem hipóteses e apontamentos de que você acaba tendo influência da Amazônia na umidade do restante do continente.  O que já tem bastante constatação é que as áreas com vegetação contribuem para a umidade, em várias escalas.

O Cantareira, além de estar em uma região que teoricamente vai receber essa influência da região amazônica, está em uma área praticamente toda desmatada. Então as próprias condições atuais do Sistema Cantareira não são as mais ideais para que o sistema de abastecimento possa ser resiliente tanto a períodos de chuva intensa, tanto a períodos de estiagem.

A gente lançou na Aliança pela Água, agora em junho, uma publicação que é uma tradução de um relatório feito por um pessoal da Austrália e da Califórnia sobre as lições aprendidas com a seca do milênio que aconteceu na Austrália de 1997 a 2012. Uma das coisas que eles colocam, e isso a gente já ouviu relacionada aos EUA, é que um dos aprendizados é você diversificar a fonte de água. Nós estamos gastando bilhões para construir mais represas e mais ligações de rios com represas e praticamente não temos nenhum avanço em reuso, muito poucos avanços em relação à redução de perdas muitos poucos avanços em aumento de autonomia livre, em escala doméstica e até mesmo em equipamentos públicos em que você pode coletar individualmente água de chuva para fins não potáveis. Se todo mundo fizer isso, a quantidade de água potável que a gente precisaria seria menor. Esse é um tipo de exemplo sobre o como já existem estratégias para se lidar com isso e o quão longe, no caso São Paulo, mesmo o Brasil está.

A governança é fundamental. À medida que diminui a disponibilidade dos recursos, a tendência é o aumento dos conflitos em escala local,  entre regiões e entre países. E à medida que diminuem os recursos, a tendência é que aqueles que têm menos condições de acesso a serviços urbanos em geral sejam também aqueles  que estão mais vulneráveis a não ter acesso a água.

Nesse sentido, a construção de boa governança é fundamental. Isso parece uma coisa simples, mas é uma arquitetura bastante complexa. Acho que quando a gente coloca a questão de uma nova cultura de cuidado com a água buscamos trazer um pouco esse alerta para as diferentes frentes. Tradicionalmente, as diferentes frentes que dialogam sobre a água não mantêm diálogo. A construção de boa governança é fundamental e um grande desafio. Porque a boa governança vai pegar vários níveis, desde a questão da articulação entre os atores, entre as políticas, de mecanismos de transparência, regulação de controle.

A gente está na contramão de uma série de coisas…  

Estratégias para ligar com isso estão sendo discutidas em torno de um conceito que a gente sequer começou a discutir no Brasil, que é a segurança hídrica. Hoje o que a gente tem de um lado de segurança hídrica é o que Defesa Civil faria, prevenir e lidar com desastres naturais. E de outro lado é o que o Ministério da Integração e a Sabesp estão fazendo, propondo um monte de obras de transposição, canalização, de construção de novas represas e inverter cursos de rios para trazer  água para São Paulo. Isso não é necessariamente segurança hídrica. Hoje o que se tem de discussão sobre segurança hídrica é garantir água em quantidade e qualidade adequada, acessível para diferentes usos, desde a subsistência, bem estar, desenvolvimento econômico e que isso ocorra sem comprometer terceiros e futuras gerações. Que ocorra sem comprometer algo que é fundamental, o ciclo hidrológico. Essa é uma das partes que eu mais gosto no livro, quando ele fala como a água surgiu na terra. A água líquida é muito especial. A água doce líquida.

Nós não temos definição própria sobre segurança hídrica?

Na verdade a gente não tem nenhum debate sobre isso. O que tem é um entendimento sem o debate. Ao mesmo tempo em que se tem, por exemplo, no setor da saúde o conceito de segurança da água, que prevê a avaliação de risco do manancial até a torneira para evitar contaminação, temos o conceito de segurança hídrica olhando para a questão da adaptação climática. Ou seja, é um conceito novo que já vem sendo discutido pela ONU, UN-Whater e Cepal. E esse é um debate que o Brasil precisa começar a fazer. Esse é um debate que o Brasil precisa começar a fazer, sob o risco de a gente não conseguir construir a governança necessária para dar conta do desafio de ter água no século 21.

Historicamente a população mais pobre em São Paulo e em outras cidades do país se estabeleceram em áreas de preservação ambiental e nascentes de rios, o que justifica muitas vezes a sua remoção. É possível equilibrar a permanência delas com a garantia da água ou a retirada delas é imprescindível?

Há uma gama enorme do que pode significar ocupação em beiras de rios. Há conjuntos desse tipo de ocupação em que existe um grau de risco e vulnerabilidade muito grande e que tende a aumentar essa vulnerabilidade com a intensificação dos  eventos climáticos extremos. Populações morando na beira de rios com a tendência que ocorram cada vez mais enxurradas devem ser mantidas ali?

Outra coisa que é o para que se usa aquele rio. Se há um rio que a intenção não é o uso para fins potáveis, mas que está limpo, vai se pensar em um tipo de adequação. A outra é você trabalhar a questão da ocupação do entorno das represas que são usadas para abastecimento. Talvez chegue um dia em que a gente vai concluir que precisamos abrir mão das represas de abastecimento porque não demos conta de resolver  o problema da ocupação urbana. Talvez a gente chegue num nível tão alto de custo do tratamento dessa água que não faça sentido tratá-la. A gente tem diferentes tipos de poluição, diferentes formas de tratar e diferentes custos para isso. Cada vez mais é preciso ter avaliações estratégicas mais integradas. Não somente habitação, saúde, infraestrutura urbana, saneamento.  Temos uma situação existente, mas não quer dizer que a gente pode ser conivente e deixar indefinidamente as cidades crescerem para cima dessas áreas em vez de requalificar áreas urbanas, valorizar o direito à cidade e inverter lógicas de valorização de mercado. Ou seja, a gente tem uma série de outras questões que talvez essa questão da segurança hídrica seja muito poderosa para fortalecer.

*Gisele Brito é jornalista.