Por Paula Freire Santoro, Isadora Guerreiro, Raquel Rolnik e Renato Abramowicz Santos*
Embora a produção de habitação de interesse social seja a motivação do Projeto de Intervenção Urbana para o Setor Central (PIU-SC) de São Paulo, uma análise sobre a proposta que está em debate mostrou que o Projeto não avançou na direção de reconhecer o quadro de necessidades habitacionais da região central, muito diverso, marcado por precariedades e por várias formas de vulnerabilidade. O projeto mobiliza recursos públicos – terra pública, direitos de construir e recursos financeiros – para criar uma nova frente de desenvolvimento imobiliário sem trazer dispositivos que reservem estes mesmos recursos para fazer as soluções habitacionais e melhorias que respeitem e dialoguem com as necessidades e realidades da população heterogênea que mora, trabalha e vive no centro.
A proposta desenha uma combinação complexa de instrumentos urbanísticos que permitirá aquecer o mercado imobiliário, apostando na produção de habitação de interesse social pelo mercado e não através de projetos públicos. Inclusive, possivelmente não haverá recursos disponíveis para projetos públicos face aos diversos incentivos e isenções que tornam a proposta uma nova versão da “black friday” dos direitos de construir. Ou seja, o modelo propõe que o mercado imobiliário faça habitação de interesse social, nos moldes de uma PPP Habitacional que, como temos acompanhado, não atende às famílias moradoras da região por não terem renda ou não se enquadrarem nos critérios de financiamento das novas unidades.
Todos estes temas foram debatidos no último dia 06 de fevereiro quando nos debruçamos sobre o projeto, pesquisadores, arquitetos, lideranças de movimentos sociais em torno da moradia, moradores de ocupações, defensores públicos, advogados e assistentes sociais ligados e atuantes na temática da habitação. Compreender o conteúdo da proposta do PIU-SC é importante pois está prevista para hoje uma nova Audiência Pública (dia 11 de fevereiro, na ETEC da Rua General Couto de Magalhães, 145, às 19hs) da fase de consulta pública antes de aprovação do projeto de lei na Câmara, que deve ser uma das prioridades da gestão Bruno Covas antes do período eleitoral.
O que são os Projetos de Intervenção Urbana (PIUs)?
Já debatemos outros PIUs por aqui, quando explicamos o que é este instrumento. Os PIUs foram criados pelo Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE) de 2014 com o objetivo de detalhar “projetos de reestruturação urbana”, ou áreas que devem passar por mudanças que vão além do que as regras de uso e ocupação do solo incluídas no Plano Diretor e no zoneamento já preveem. Um PIU então estabelece seus objetivos, detalha as intervenções e define que instrumento vai usar para poder ser financiado. Pode ser, por exemplo, uma Operação Urbana Consorciada (OUCs), como a Faria Lima e Águas Espraiadas, que vende Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) em leilões para proprietários que querem construir até o máximo que a legislação permite.
PIU combinado com Área de Intervenção Urbana (AIU): olhando bem, será que vai ter recurso para HIS?
Já na proposta para o PIU Setor Central, a estratégia de gestão e financiamento se dá através da criação de uma Área de Intervenção Urbana (AIU) sobre parte do perímetro do PIU. Neste perímetro é possível obter recursos para o programa de intervenções proposto por meio da venda de direitos de construir para os privados que querem construir acima do coeficiente básico, também através de leilões de metros quadrados, mas sem a necessidade da criação dos CEPACs. O recurso obtido vai para uma conta segregada do FUNDURB e deve financiar as transformações previstas pela lei do PIU e da AIU, mostrando-se tão concentradora quanto uma operação urbana. Mas também uma das suas principais estratégias é justamente não conseguir recursos para um fundo para a prefeitura investir nas melhorias mas, sim, incentivar os privados a produzir diretamente, por sua própria conta, parte das intervenções do projeto.
A conta segregada possui recursos pré-definidos – 30% para atendimento habitacional, por exemplo, dentre outros (ver Figura 1 acima) -, no entanto, os incentivos e bônus são tantos (isenção integral ou descontos de 50%) e para várias finalidades, que é possível que a conta não venha a ter muitos recursos…
A seguir, listamos a série de estímulos (direitos de construir doados desde que se construam as tipologias previstas), descontos e isenções na cobrança pelos direitos de construir do PIU-SC:
- Repete as isenções previstas no plano diretor estratégico – para imóveis de habitação de interesse social (HIS) ou habitação de mercado popular (HMP), para os que possuem fruição pública, para os que doarem a frente do lote para o alargamento de via, entre outros;
- não cobra pelas metragens quadradas utilizadas para áreas cobertas de uso comum até dois pavimentos em empreendimentos mistos verticais;
- Não cobra 100% do coeficiente de edifícios que venham a ser demolidos e reconstruídos, usando a mesma forma urbana anterior. Isso quer dizer que será possível demolir os edifícios que ocupam grande parte do lote e são muito altos, para dar lugar a um novo edifício usando o mesmo volume construído, sem pagar pelos direitos de construir, estimulando a demolição do parque construído existente;
- Serão dados descontos graduais anuais considerando o quanto se pode construir hoje na Operação Urbana Centro – 75% no 1o ano, 50% no 2o ano, 25% no 3o ano – de forma que quem hoje não paga pelos direitos de construir, pode protocolar projeto e garantir o não pagamento ou pagamento de apenas 25% do que deveria pagar;
- Será dado um bônus: direitos de construir a mais em quantidade proporcional à área destinada aos usos incentivados como produção de habitação de interesse social, requalificação de edificações construídas até 1980, e pelas ações de preservação de edificações tombadas pelo patrimônio (ZEPEC-BIR);
- E será dado 50% de desconto para os lotes lindeiros ao apoio Sul (como detalharemos a diante). Considerando que esta é uma importante frente imobiliária é possível que algum recurso venha a compor a conta segregada, isso se não for combinado com as isenções e descontos listados acima.
Apenas 42,5% do potencial construtivo disponibilizado será vendido, o resto é gratuito ou é um bônus. Ainda, considerando que o mercado imobiliário numa década em que estava indo bem consumiu apenas 1 milhão de m2 (de 2006 a 2012) e que a previsão para os próximos 20 anos é que consuma 1.700.000 m2, seguindo esses padrão e ritmo é provável que o mercado consiga consumir apenas a metragem prevista como gratuita no projeto (1.800.000 m2). Ao não pagar pelos direitos de construir, a conta segregada não terá recursos e não poderá custear o Programa de Intervenções previsto. Por isso mesmo a produção de habitação de interesse social está desenhada para ser integralmente feita pelo mercado imobiliário, nos moldes de uma PPP. Ou seja, quem vai fazer habitação para quem realmente precisa, se o mercado com recursos não faz e o poder público não terá recurso na conta?
Outro impacto pouco comentado nos debates é que, ao separar a parte recursos obtidos com a dinâmica imobiliária no Centro nessa conta segregada, acaba-se incentivando e atraindo recursos que hoje são arrecadados e vão para o FUNDURB. A tendência, portanto, não é só gerar baixa arrecadação com incentivos e descontos, mas também diminuir e afetar de modo mais amplo e geral a arrecadação do próprio FUNDURB, na medida em que os investidores tendem a se concentrar nas áreas incentivadas da cidade, que cobram menos ou dão isenção total na cobrança pelos direitos de construir.
Mas afinal, o que o PIU deseja implementar na área central? Mais que melhorias, o PIU cria uma nova frente imobiliária junto ao Eixo Estratégico de Apoio Sul.
O PIU-SC vem para substituir a OUC Centro, com um Programa de Intervenções que inclui 13 transposições viárias (principalmente de pedestres sobre a Marginal Tietê), obras de requalificação viária, implantação de áreas verdes, construção de equipamentos públicos, restauração e reconversão de dois imóveis tombados pelo patrimônio, entre outras (listados no art. 29 da minuta proposta) (ver Figura 3 que segue).
Além das intervenções já listadas, propõe 2 Projetos Especiais (Parque Minhocão e Parque Dom Pedro II) que deverão ser outros dois PIUs e podem vir a ter regras descritas em uma nova lei, uma espécie de PIU dentro do PIU. O PIU Minhocão, por exemplo, já está em debate, repetindo e reforçando o padrão e tendência aqui já problematizados de ignorar e invisibilizar as realidades existentes e o quadro de vulnerabilidad e que constituem também a região.
E propõe também 5 Projetos Estratégicos (em laranja na figura anterior), que visam a promoção imobiliária em torno de uma nova avenida (Eixo Estratégico Apoio Urbano Sul) que vai conectar, paralelamente à Marginal Tietê, a Barra Funda (a partir da Rua Norma Pieruccini Giannotti) ao Canindé, Pari e Belém, utilizando-se de trechos de ruas existentes e abrindo novas ligações. Essa é uma das grandes apostas do PIU-SC: a avenida projetada pretende constituir uma nova frente de expansão imobiliária, na qual as novas construções terão incentivo de desconto de 50% na Outorga Onerosa, além da transformação de grandes terras públicas em Projetos Estratégicos de desenvolvimento imobiliário que ainda serão detalhados e podem ficar bem parecidos com (quando não as próprias) Parcerias Público Privadas (PPPs): a área do Detran no Bom Retiro, as da CMTC, Santo Antônio e Estádio da Portuguesa, no Canindé, e a área da SPTrans no Pari.
Mas… Quem mora no Centro não será beneficiado pelo PIU-SC? Parece que não…
A análise do projeto mostrou que o PIU-SC ignora a presença, apropriação e consolidação popular do centro da cidade, que constitui um rico e disputado território de moradia, trabalho e cultura que simplesmente não é o foco das intervenções do plano. Embora toda a região em questão necessite urgentemente de estratégias e recursos para permitir melhores condições de vida a uma enorme população que já tem suas áreas demarcadas como ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), ou estão há anos em ocupações, favelas e cortiços extremamente precários, tais situações não têm atenção ou aprofundamento na minuta do PIU-SC, sendo tratadas de maneira evasiva e genérica, quando o são.
Uma análise territorial da região apresentada nos debates do dia 06 de fevereiro com dados do Observatório de Remoções demonstrou a verdadeira guerra urbana em curso que vem sendo travada e disputada ali com enorme número de reintegrações de posse, despejos, além de uma forte pressão de proprietários, mercado imobiliário e partes do judiciário em torno de ameaças e disputas jurídicas por remoção, quadro que agrava a situação de vulnerabilidade social e sujeição à insegurança habitacional com índices semelhantes aos das periferias.
Apontamos que qualquer plano que pretenda atuar nesse território e situação precisa fazer um levantamento detalhado das necessidades habitacionais, sociais, de trabalho e de cultura da região e apontar intervenções e melhorias claras e direcionadas, que respeitem e dialoguem com as especificidades e realidades postas. Somente a promessa (vaga) de produção de novas unidades habitacionais não apenas não dá resposta às necessidades desta população, como pode ainda piorá-las, na medida em que aponta para sua substituição por demandas mais “adequadas” ao modelo de cidade do PIU.
A análise das propostas para a habitação do PIU-SC, bem como a priorização de demanda, estratégias de deslocamento involuntário (remoções) e gestão das ZEIS mostra que a produção habitacional decorrente dos recursos do PIU-SC pode acabar sendo utilizada por uma população que hoje não mora ou depende do centro, além de não ser direcionada para as necessidades específicas desta demanda. A situação das ocupações hoje existentes não é tocada, e a possibilidade de concessão (e não alienação) de imóveis públicos para Entidades e Associações gerirem não existe. Não há recursos públicos para a produção habitacional (que deve ser feita pela iniciativa privada), apenas para estudos técnicos e aquisição de imóveis, além do famoso Auxílio Aluguel que só ajudará a piorar a precariedade e insegurança habitacional na região. No modelo de desenvolvimento urbano previsto pelo PIU-SC a habitação é entendida como responsabilidade do mercado, que deve produzi-la, eventualmente com subsídios. Os efeitos desse modelo já são conhecidos por nós: expulsão e substituição da população residente nos imóveis e comércios por outra vinda de fora, como estamos acompanhando na PPP habitacional nos Campos Elíseos.
E a combinação PIU com ZEIS, garante a permanência desta população na região central? Parece que nem combinar estão combinando…
No caso das grandes áreas demarcadas como ZEIS e que estão dentro do perímetro da AIU, é proposto a adoção e implementação de Conselhos Gestores – como, aliás, é determinado pelo PDE – para tratar e negociar a situação. A experiência que temos vivenciado nos Conselhos Gestores das Quadras 36 (Hospital Pérola Byton) e 37/38 (PPP habitacional dos Campos Elíseos), revela que não há, ao longo do processo, transparência e informações nem espaço para participação das famílias atingidas, que acabam não tendo outra opção a não ser aceitar projetos e propostas (como o recebimento de auxílio aluguel para saírem de suas casas) que já vem prontos e sem diálogo. Importante apontar: sem nenhuma garantia de que as famílias removidas vão receber algum atendimento definitivo no território em que vivem.
Além disso, não fica clara na minuta proposta como será a relação do Conselho Gestor do PIU com os Conselhos Gestores das ZEIS. O PIU Vila Leopoldina-Villa Lobos, no qual o projeto do PIU veio antes que o Plano das ZEIS, relegou ao conselho de ZEIS uma discussão sobre como será a remoção e a futura relocação fora do perímetro do PIU (!), e não sobre como deve ser um plano de urbanização da ZEIS garantindo a permanência da população.
Conclusão: de uma maneira geral, a proposta do PIU-SC foi rechaçada pelos presentes nos debates do último dia 6. Ficou uma pergunta no ar: no que o PIU-SC ajuda a solucionar os desafios habitacionais do Centro de São Paulo? Será mesmo que precisamos de um PIU para que as situações de vulnerabilidade habitacional sejam superadas e as necessidades de quem mora e vive no centro, atualmente, sejam realmente respeitadas e atendidas?
Veja as apresentações feitas no dia 06 de fevereiro:
1 – Leitura Urbana do Centro e do modelo de cidade do PIU-SC.
2 – Financiamento do PIU-SC.
3 – Habitação e gestão de ZEIS do PIU-SC.
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