Rua Novo Habitat, Nikolas Ferreira e os efeitos práticos do paradigma liberal e rentista

O debate público recente, suscitado pela postagem do deputado Nikolas Ferreira sobre a Rua Novo Habitat em Diadema, revelou não apenas o crônico problema da habitação popular no Brasil, mas também uma profunda contradição no discurso da direita. O que aparenta ser uma crítica à desordem urbana na verdade é cada vez mais produto e resultado direto da supervalorização do empreendedorismo rentista que esse campo político prega.
O projeto Novo Habitat foi originalmente uma intervenção habitacional da Prefeitura de Diadema em uma favela precária, buscando melhorar as condições de moradia do local, implantando ali mesmo um conjunto habitacional. Anos depois, a foto postada pelo deputado mostra um cenário transformado: andares adicionais, os famosos puxadinhos, fachadas avançando sobre a calçada, um quadro que o deputado mineiro classificou como “desordem horrorosa”. Em sua análise, atribuiu a culpa por esta paisagem a uma suposta “falta de moral, de sentido de ordem” de pessoas pobres.
Descompasso entre modelos e necessidades
Entretanto, o que esta paisagem aponta é um processo histórico, estrutural, redefinido na contemporaneidade. Historicamente, conjuntos habitacionais sempre demonstraram um certo descompasso entre os modelos propostos e as necessidades habitacionais das pessoas, o que invariavelmente leva a adaptações às estratégias de sobrevivência e prosperidade das famílias envolvidas, e o modelo fixo e único acaba, por vezes, produzindo o fenômeno conhecido como refavela. O fenômeno da autoconstrução progressiva, as casas que vão se ampliando no tempo marcou a “solução habitacional” dos trabalhadores, terceirizando para eles mesmos a solução de moradia, ao jamais incorporar no salário o custo da moradia e muito menos disponibilizar terrenos pré urbanizados, recursos financeiros e tecnológicos para apoiar esta produção através de políticas públicas. A luta por políticas públicas de urbanização, melhorias e por acesso à habitação digna marcou o cenário político desde o período da transição democrática.
A contradição do discurso liberal
Este cenário político territorial tem se transformado nas últimas décadas. E o crescimento de um campo político (o qual Nikolas Ferreira é uma das lideranças vocais) é uma destas transformações. O centro da proposta dessa “coalizão bolsonarista” é a diminuição radical do papel do Estado, seu desaparecimento como provedor. A premissa é a de que o Estado não deve se intrometer – e a defesa irrestrita da “liberdade para o mercado” o que inclui a “liberdade para construir”.
Essa perspectiva se traduz igualmente nos territórios populares pela máxima: “todo mundo se vira a partir do que tem”, buscando capitalizar tudo o que possa ser usado como ativo. Esse é o cerne da “supervalorização do chamado empreendedorismo popular”, onde o indivíduo deve prosperar, extraindo rentabilidade de seus ativos. A eterna “sevirologia” (nas palavras do mestre Soró liderança popular de Perus) que constituiu o cotidiano urbano das massas populares e que contrastava com a luta por políticas públicas que garantam o acesso à moradia digna, se transmutou em “empreendedorismo” consolidando a eterna lógica de auto espoliação da autoconstrução em “negócio”. A capitalização de ativos inclui fazer iFood com uma bicicleta, Uber com um carro, ou, no caso Novo Habitat e em milhares de habitações populares construir um ponto comercial ou casas para alugar em seu próprio terreno. E a dimensão pública, normativa, a ideia de bem comum, desaparece não só como realidade, mas também como horizonte, como imaginário político.
O que o deputado acusa como desordem é, ironicamente, o efeito direto deste paradigma. A “subjetividade empreendedora”, baseada na capitalização de tudo, emerge como uma resposta à precariedade do trabalho, ao “não salário”, à necessidade de complementação de renda e à ausência de previdência social e aposentadoria.
Em suma, o modelo habitacional e social que está produzindo a paisagem que ele está acusando como desordem é precisamente o modelo baseado na exaltação do empreendedorismo individual e no desmantelamento das regulamentações estatais, tal como defendido por seu campo político. A desordem observada no Novo Habitat não é uma falha moral dos moradores, mas sim a concretização literal e desorganizada da doutrina de “liberdade para construir”, turbinando e ressignificando a espoliação da autoconstrução.
Ao culpar os pobres pelas consequências de um sistema que incentiva a capitalização de tudo acima de qualquer planejamento urbano ou ideia de bem comum, a extrema direita confronta o espelho das suas próprias propostas.
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