Fernanda Accioly Moreira*
O desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, imóvel público da União, no dia primeiro de maio de 2018, trouxe à tona não só a emergência da crise habitacional, como uma série de outras questões. Dentre elas, a existência de uma grande quantidade de imóveis públicos vazios, que poderiam estar a serviço do atendimento de demandas da sociedade e exercendo de forma efetiva sua função social.
No último dia 22 de junho, uma reportagem da Agência Pública denunciou a existência de mais de 10 mil imóveis da União vazios. E, apesar de ser um número alarmante , não se sabe ao certo qual é sua real situação, nem mesmo sua localização, características físicas ou o zoneamento e a legislação ambiental incidentes, o que impede uma análise mais precisa sobre qual seria sua vocação. A falta de informações mais precisas sobre o uso e o estado atual desses imóveis é elemento central que dificulta uma gestão mais eficiente e racional dos imóveis da União.
A ausência de efetivo conhecimento sobre o universo de imóveis públicos não se refere apenas aos imóveis públicos federais, mas é uma realidade para a maioria dos órgãos responsáveis pela gestão patrimonial nos municípios e estados também. A falta de delimitação precisa, de documentação e de controle efetivo sobre o uso das terras públicas, além de impossibilitar a utilização racional e planejada de imóveis públicos, dificulta o domínio sobre o que é efetivamente público. Tal descontrole promove diferentes formas de apropriações indevidas de terras públicas, que têm, em muitos casos, servido estritamente a interesses particulares.
O Estado brasileiro, ao longo da história, tratou de impor regras que, se observadas em conjunto, produziram um confuso emaranhado de resoluções e decretos que serviram, e ainda servem, para promover o acesso desigual ao patrimônio da União. De acordo com a pesquisa que elaborei para minha tese de doutorado, alguns grupos com suficiente poder e representação políticos e econômicos detêm o acesso privilegiado a informações e os meios técnicos, financeiros e operacionais para cumprir as exigências das teias burocráticas, o que lhes dá acesso aos imóveis e terras que deveriam estar servindo ao interesse público. Enquanto isso, a população mais pobre fez uso de mecanismos alternativos e criativos para garantir a terra como meio de sobrevivência através da posse. O efeito desse tratamento desigual a foi a perpetuação da irresolução das posses ilegais em áreas públicas ocupadas por milhares de famílias e da insegurança diante da constante iminência da retirada dessas pessoas do seu local de origem e moradia.
Não à toa, centenas de milhares de ações de reintegração de posse promovidas pelo Estado, contra ocupantes de áreas da União, foram propostas nas décadas passadas, sem que houvesse alternativas por parte da administração federal para resolver essas situações. Os assentamentos populares, excluídos da cidade legal e reféns da ausência de políticas desse mesmo Estado, continuam sem garantias mesmo após a Constituição Federal de 1988, que pela primeira vez, abordou a função social da propriedade urbana.
A única forma de reconhecimento histórico das posses ilegais de terras públicas federais é a inscrição de ocupação, que é sempre paga e portanto também pouco acessível, restando aos moradores das ocupações ilegais populares em terras da União, o estado de permanente vulnerabilidade, irresolução e insegurança da posse.
A partir de 2003, uma série de medidas procurando fazer com que os imóveis públicos de fato atendessem a demandas sociais foram tomadas pela SPU, dentre elas regularização fundiária, com a adoção de novos instrumentos, assim como a possibilidade da venda direta e doação, não só de imóveis da União, como também dos imóveis ociosos do INSS e da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA), aos beneficiários dos programas de habitação de interesse social.
Grupos de trabalho foram criados nos estados e em Brasília, para identificar e avaliar imóveis vazios e aptos a receberem projetos habitacionais. A proposta foi a de destinar tais imóveis para entidades sem fins lucrativos e cooperativas habitacionais locais, financiados pelos programas do governo federal, como o Minha Casa, Minha Vida – Entidades. Após cinco anos de trabalho, em função de diversas dificuldades e resistências o resultado desta ação a ficou aquém do esperado.
De acordo com dados da SPU, até julho de 2013, 38 imóveis da União nos estados da Bahia, Goiás, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, São Paulo, Tocantins e no Distrito Federal haviam sido destinados a entidades sem fins lucrativos ou cooperativas habitacionais para a construção de empreendimentos habitacionais pelo programa Minha Casa Minha Vida Entidades. E estimava-se que, após a construção dos empreendimentos habitacionais nesses imóveis, cerca de 8 mil famílias de baixa renda seriam diretamente beneficiadas. Alguns exemplos desse processo foram mencionados na reportagem da Agência Pública, como o imóvel da Avenida Ipiranga em São Paulo e da Manuel Congo, no Rio de Janeiro.
É notório que os processos que envolvem a gestão do patrimônio público federal são extremamente complexos. Tal complexidade está relacionada à dimensão desse patrimônio, à natureza de cada um dos imóveis e aos sistemas de gestão inadequados e ultrapassados. A efetiva gestão desses imóveis torna-se uma tarefa ainda mais árdua pelo fato de que muitas dessas informações sobre os imóveis públicos são carregadas de imprecisões e, portanto, são pouco confiáveis.
Um primeiro e urgente esforço na reversão dessa situação, para que seja possível uma gestão mais eficiente e racional dos imóveis públicos federais, deve se concentrar na demarcação das terras públicas federais e na sistematização dos cadastros de imóveis da União. São necessárias a apuração das irregularidades, a unificação dos cadastros, a territorialização dos imóveis através de instrumentos georreferenciados e a revisão de parâmetros de precificação dos imóveis, de modo a efetivar uma cobrança justa daqueles que utilizam imóveis públicas para fins privados. Por fim, é preciso criar mecanismos de maior transparência e controle social, para que interesses mais amplos da sociedade, como o atendimento às necessidades habitacionais e de equipamentos públicos possam de fato ser uma prioridade.
*Arquiteta, urbanista e pesquisadora do LabCidade. Defendeu, em 2018, a tese de doutorado intitulada “Terras de exclusão, portos de resistência: um estudo sobre a função social da propriedade das terras da União” (FAUUSP).
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