Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Por Raquel Rolnik, Julia Ávila Franzoni e Talita Anzei Gonsales*

No contexto da pandemia da COVID-19, o direito social à moradia (art. 6º, CF) está diretamente relacionado à proteção da saúde (art. 196, CF), tendo em vista que a habitação é essencial para o isolamento social, principal mecanismo de contenção do vírus. O Ministro Luís Roberto Barroso, a partir dessa fundamentação [veja aqui na íntegra] alinhada aos marcos normativos internacionais de proteção dos direitos humanos, no último dia 03 de junho, deferiu parcialmente uma medida cautelar referente à ADPF 828, apresentada pelo PSOL, em abril deste ano, suspendendo, por 6 (seis) meses, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis. Nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável, a mesma decisão suspendeu pelo prazo de 6 (seis) meses a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária (art. 59, § 1º, da Lei nº 8.425/1991). Algumas distinções foram estabelecidas para casos relativos a ocupações recentes, que  assim como  as demais ressalvas  à abrangência da cautelar deverão ser analisadas nos casos concretos. A decisão, que ainda irá a plenário no STF, é uma vitória da Campanha Despejo Zero, uma articulação em defesa da vida, da moradia e dos direitos humanos, composta por mais de 100 entidades e organizada em dezenas de núcleos espalhados por todo país e com abrangência internacional.

Desde o início da pandemia, a Campanha tem defendido que o direito à moradia deve ser compreendido como elemento essencial do direito à saúde (pública e individual), evidenciando o caráter coletivo e a dimensão territorial da efetivação dos direitos sociais. Ficar em casa é uma medida de proteção à vida individual, familiar e coletiva. Poder ter uma casa é fundamental para que esta estratégia possa ser implementada. A decisão do Ministro, sensível à dimensão humanitária decorrente da crise sanitária, sustentou-se em três premissas interdependentes: (i) no contexto da pandemia da COVID-19, a tutela do direito à moradia funciona como condição de realização do isolamento social e, por conseguinte, para o enfrentamento da doença; (ii) a atuação estatal deve ser orientada no sentido de prover atenção especial a pessoas em situação de vulnerabilidade, que são mais propensas a contrair o vírus e (iii) diante da situação de crise sanitária, deve-se conferir absoluta prioridade a evitar o incremento do número de desabrigados. Entendendo que o papel da Corte Constitucional, especialmente no contexto da pandemia, é intervir para defender os direitos fundamentais, Barroso deu especial atenção à proteção dos direitos de quem está em situação de vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, o interesse de toda a coletividade em conter a propagação da COVID-19.

Diversas entidades ligadas à Campanha Despejo Zero se habilitaram como amici curiae no processo, trazendo elementos fáticos e jurídicos que sustentaram os fundamentos principais da decisão. As organizações alertaram para a necessidade de compreender a vulnerabilidade social a partir da desigualdade, medida social, racial, sexual e territorialmente, dos efeitos da pandemia – como vem denunciando amplamente o mapeamento da Campanha e o Observatório de Remoções, é nos territórios populares em que vivem famílias pobres e predominantemente não brancas, onde os piores impactos da pandemia estão sendo sentidos. Ainda, as ordens de despejo ao implicar o uso de força policial são potencialmente violadoras de direitos, como contam as experiências tristes e de marcada violência citadas na decisão, e, portanto, devem determinar o cumprimento das garantias prévias às famílias envolvidas e o atendimento de medidas de mediação de conflito, nos termos do que prescreve a Resolução 10 do CNDH.

O quadro precário da moradia no Brasil já era central para compreendermos a crise social e política do país antes da pandemia e, agora, assume enorme relevância no enfrentamento global dessa catástrofe. As necessidades habitacionais se arrastam ao longo dos anos e, neste momento, ganham imensa proporção, uma vez que não há nenhuma política governamental voltada à questão da moradia para acolhimento das famílias. Programas anteriores direcionados para as faixas de renda mais baixa foram desidratados ou destruídos e nenhuma, absolutamente nenhuma medida emergencial, provisória ou estrutural foi lançada. Em um contexto em que a crise econômica e o desemprego conexos à crise sanitária impactam duramente famílias que têm perdido a capacidade de pagar aluguel, este quadro nos ajuda a explicar a verdadeira explosão do número de ocupações de moradia nos últimos tempos, além do aumento exponencial de moradores de rua. Cada remoção forçada, na total ausência de políticas de acolhimento e de acesso à moradia, resulta na criação de novas formas precárias de morar. Segundo dados da Campanha, ao menos 14 mil famílias já foram removidas e cerca de 84 mil estão, atualmente, ameaçadas de remoção sem que qualquer alternativa de destino tenha sido apresentada pelas autoridades envolvidas. A suspensão dos despejos é, portanto, o mínimo que o Sistema de Justiça pode determinar para proteger o direito à vida e saúde pública enquanto vigente a pandemia.

O tema, ademais, tem movido as Assembleias Estaduais pelo país; 5 estados já promulgaram leis suspendendo despejos na pandemia, e o próprio Congresso Nacional está discutindo a matéria. O projeto de Lei Federal 827/2020 foi recentemente aprovado na Câmara dos Deputados e encontra-se na ordem do dia para votação no Senado Federal. O texto em discussão determina a suspensão do cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, urbano ou rural, por tempo superior à decisão do Ministro Barroso (no projeto, a suspensão seria até dezembro de 2021), além de ampliar o marco temporal relativo às ocupações abrangidas pela medida (estariam abarcadas as ocupações ocorridas até 31/03/21). À despeito dessa ampliação, não há sentido ético e jurídico em criar hierarquias que atrelam tempo de posse à garantia de direitos, ainda mais considerando que a pandemia combinada à ausência de políticas emergenciais de moradia, como vimos, é o grande motor da formação de novas ocupações. Importantíssima, contudo, é a escolha do legislador em determinar, enquanto vigente o período indicado, a suspensão dos processos judiciais, indicando a necessidade de realização, pelo Poder Judiciário, de audiência de mediação entre as partes, com participação do Ministério Público e da Defensoria Pública e, ainda, inspeção judicial nas áreas em litígio, antes do cumprimento de ações de despejo. Nestes termos, o PL 827 vem reforçar esta importante medida cautelar e sua aprovação deve ser fortemente apoiada.

*Pesquisadoras do Observatório de Remoções