Foto: The Washington Post

Por Bianca Tavolari *

Uma pandemia da ordem da que estamos vivendo exige que diferentes medidas sejam tomadas para mitigar os seus impactos sociais e econômicos. Nenhum aspecto da vida passou ileso e as desigualdades sociais foram esgarçadas. As regras do jogo não podem ser as mesmas. No Brasil, algumas destas respostas à crise estão chegando por iniciativa do executivo, seja por meio de decretos ou de medidas provisórias, mas também o legislativo tem apresentado propostas de lei que alteram, de forma substancial, as relações jurídicas em diversos âmbitos.

No dia 30 de março, o senador Antonio Anastasia (PSD/MG), apresentou um projeto de lei que cria um regime jurídico emergencial e transitório para o direito privado. O PL n.1.179/2020 trata de diversos temas das relações entre particulares e que estruturam a vida da maioria das pessoas. Um destes pontos está diretamente relacionado à vida nas cidades: os artigos 9 e 10 estabelecem novas regras para a locação de imóveis urbanos ao longo do ano de 2020.

Os impactos da pandemia exigem que as relações de aluguel sejam repensadas. Uma política alinhada com as recomendações das autoridades médicas precisa ter duas prioridades: (i) garantir que ninguém seja despejado e fique sem ter onde morar e (ii) estabelecer regras claras que ajudem tanto locatários quanto locadores a se planejar no longo prazo e que leve diferentes situações sociais, econômicas e territoriais em consideração.

O PL n.1.179/2020 propôs avanços em ambos os objetivos, ainda que tivesse muitos pontos cegos e partes a esclarecer. O artigo 9 determinava que as liminares em ações de despejo seriam suspensas, congelando a regra vigente da Lei do Inquilinato que estabelece que a liminar nas ações de despejo deve ser concedida em quinze dias, independentemente de audiência para ouvir a parte contrária, em um procedimento bastante rápido. Já o artigo 10 previa que os locatários que sofressem alterações econômico-financeiras em sua renda poderiam suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos aluguéis, com a possibilidade de parcelar os valores atrasados a partir do final de outubro deste ano.

Na justificativa ao projeto, são explicitadas as razões para adotar estas medidas: “Hoje, tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor, possuem regras adequadas para resolver ou revisar contratos por imprevisão, no primeiro caso, e onerosidade excessiva, no segundo diploma. É preciso agora conter os excessos em nome da ocorrência do caso fortuito e da força maior, mas também permitir que segmentos vulneráveis como os locatários urbanos não sofram restrições ao direito à moradia.”

Hoje (sexta-feira, 3 de abril de 2020) o projeto de lei foi sancionado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Mas os pontos sobre locação foram retirados do texto aprovado. O parecer da relatora Simone Tebet (MDB/MS) faz alterações na suspensão de liminares em despejos e, além disso, suprime todo o artigo que trata do pagamento de aluguéis. A justificativa usada é o fato de o texto presumir que locatários não terão como pagar os aluguéis e desconsiderar a situação de locadores que vivem com estas rendas. E ainda: “O ideal é deixar para as negociações privadas esse assunto, com a lembrança de que o ordenamento jurídico já dispõe de ferramentas para autorizar, a depender do caso concreto, a revisão contratual, a exemplo dos arts. 317 e 478 do Código Civil.”

Assim, o substitutivo que agora vai para votação da Câmara não tem qualquer regra a respeito dos contratos de aluguel. Locadores e locatários terão que renegociar entre si. Caso não cheguem a um acordo e o locatário não puder mais pagar pelos aluguéis, será despejado, seguindo a regra da Lei do Inquilinato. A única diferença é que as liminares estão suspensas, mas nada impede que o locatário seja despejado por sentença judicial, ainda que isto leve um pouco mais de tempo.

O projeto inicial do senador Anastasia avançava no caminho certo e poderia ainda ser ampliado. Além das liminares, seria preciso suspender a execução das sentenças em ações de despejo. Além das ações de despejo, seria preciso incluir as ações de reintegração de posse em bens imóveis privados. O prazo teria que ser estendido: a suspensão deveria abarcar todas as ações em curso e não só aquelas ajuizadas a partir de 20 de março. Seria preciso tratar das despesas de condomínio. Seria preciso rever as hipóteses de falta de pagamento de aluguel como infração contratual. Seria ainda preciso incluir os intermediários: locador e locatário geralmente estão em relações jurídicas que  envolvem imobiliárias. Locadores que vivem da renda do aluguel de um imóvel também deveriam ser protegidos. Casos como o despejo por falta de pagamento de condomínio e imóveis que vão à leilão também precisariam ser considerados.

O novo texto é um retrocesso. As novas medidas não criam apenas regras para as relações privadas, elas tratam de uma política de vida e morte. Permanecer em segurança em um imóvel alugado não é apenas uma questão de direito à moradia, é uma questão de saúde pública. Outros países estão tomando medidas importantes a respeito do aluguel. A Inglaterra concedeu uma suspensão de 3 meses em todas as ações de despejo e possessórias, além de criar um fundo para amparar os locatários que não conseguem mais pagar os valores de seus aluguéis. Medida semelhante foi adotada na Espanha. Nos Estados Unidos, o CARES Act criou uma moratória para todo e qualquer despejo por 60 dias, além das medidas específicas adotadas por alguns estados.

Tudo indica que a tramitação da nova proposta será tão rápida quanto foi a deliberação no Senado. A Câmara tem agora a oportunidade de mostrar que está à altura do enorme desafio que é pensar regras jurídicas para um estado absolutamente sem precedentes. E que estas regras possam de fato contemplar os direitos dos mais vulneráveis.

* Bianca Tavolari é professora do Insper e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.