Por Isadora de Andrade Guerreiro *

Não bastou serem removidas do Córrego do Bispo por estarem em área de risco e por ocuparem a área de um futuro parque previsto na PPP Habitacional, as famílias passaram a receber o precário Auxílio Aluguel pela Prefeitura, e agora o poder público ameaça não renová-lo, criando um impasse na vida dos afetados, em uma verdadeira sequência de desastres que não acabou com a primeira remoção – e nem parece ter um fim próximo.

Entre Janeiro e Maio de 2019 quase 1.500 famílias perderam suas casas na região do entorno do Córrego do Bispo, localizado no Peri Alto, Zona Norte de São Paulo, por conta de uma remoção e de demolições da Prefeitura sob a justificativa de risco, como noticiado pelo LabCidade na ocasião. Há um ano, estas famílias passaram a receber o Auxílio Aluguel da prefeitura, enquadradas como removidas de área de risco (nos termos da Portaria Sehab 131/2015). Este enquadramento assegurava a elas o benefício por um ano, renovável por mais um. No entanto, já naquele momento questionamos o procedimento adotado pelo município: a área removida compunha o conjunto de favelas e comunidades que fazem parte do perímetro do lote 12 – Casa Verde-Cachoeirinha da PPP Habitacional Casa da Família, cujo edital de licitação foi lançado em 2018 e cujos contratos foram formalizados em junho de 2019. Ou seja, as famílias deveriam ter sido enquadradas na referida Portaria como removidas por obras, o que lhes daria o direito de recebimento do Auxílio Aluguel por tempo indeterminado, até o atendimento habitacional definitivo.

Acontece que a Portaria 131/2015 foi alterada em junho do ano passado (Portaria Sehab 68/2019), retirando a possibilidade de renovação dos benefícios de famílias removidas de áreas de risco. E, agora, apesar da alteração ser posterior à remoção realizada, seguindo esta nova legislação, a Prefeitura está encerrando o atendimento aos removidos do Córrego do Bispo.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo fez, no último dia 21 de fevereiro, uma manifestação na Ação Civil Pública que trata do caso, requerendo a renovação do benefício e alegando que, quando ele foi concedido às famílias, havia esta possibilidade, que foi inclusive mobilizada pela Prefeitura em audiência sobre a remoção com os/as moradores/as. E, também, levantando a questão de que este atendimento, na verdade, deveria ter sido por tempo indeterminado, dada a implantação da PPP no local. Ou seja: a remoção não está associada apenas ao risco, mas também para a implantação do projeto da PPP Habitacional no local, que prevê a construção de um parque na área.

Gostaríamos aqui de trazer mais insumos ao apelo da Defensoria Pública. Durante este mês de fevereiro fomos visitar e entrevistar muitas destas famílias, que se espalharam pela região, para entender a situação em que se encontram. Existem casos de novas ocupações, adensamento de ocupações já existentes, permanência em área de risco, co-habitação, aluguel de famílias grandes em cômodos exíguos, precários e insalubres, e até mesmo pessoas que estão na rua.

Dentre os entrevistados e entrevistadas que passaram a alugar sua moradia com o benefício, algumas constantes chamaram a atenção. Primeiramente, a insuficiência do Auxílio Aluguel de R$ 400 para a locação de casas ou apartamentos de um ou dois cômodos nas áreas informais do entorno, acompanhada do enorme peso nos orçamentos familiares das novas despesas com moradia (água e luz, em torno de R$ 200) para além do aluguel, não coberto pelo benefício. Ilustramos com alguns depoimentos de ex-moradores e moradoras do Córrego do Bispo, entrevistados no dia 8 de fevereiro, cujos identidades estão mantidos em sigilo:

“Porque R$ 400, para quem tem três, quatro filhos, morando de aluguel para pagar água e luz… você vê, aqui é pequenininho. Só eu, o menino e a mulher. Aqui é R$ 126 de luz e R$ 80 de água. Aí como que a pessoa vai sobreviver assim? Com muitas pessoas que estão por aí passando necessidade, com R$ 400 ninguém aluga aqui! Pelo amor de Deus, ninguém aluga uma casa aqui, uma casa no tamanho dessa aqui, por menos de R$ 500. Ela tá com o contrato, é R$ 700!”

A maioria das famílias entrevistadas tinha entrado no mercado de locação residencial pela primeira vez na vida, em função da política pública, tendo vivido anteriormente no sistema de autoconstrução em lotes comprados ou ocupados. Antes, seus parcos rendimentos se direcionavam prioritariamente para a alimentação; agora, tem sido afetado pelas novas prioridades com moradia, que excedem o valor do auxílio municipal. Esta situação não é restrita ao Córrego do Bispo: já chamamos atenção para o fato de que vivemos um período no qual as despesas com habitação são as maiores nos orçamentos das famílias brasileiras com renda até dois salários mínimos, com um agravamento da situação em São Paulo – uma situação diferente da década de 1970, onde era a alimentação que ocupava este lugar.

Durante as visitas fomos testemunhas da dificuldade de adaptação das famílias às condições da locação, que envolvem na maioria das vezes restrições a animais e crianças, além de exigirem fianças das mais variadas (também não computadas no benefício municipal), desde depósito antecipado até relatos de confisco do cartão do Auxílio Aluguel. Além disso, nos relataram uma enorme insegurança ligada à moradia, maior do que aquela que sentiam construindo em área de risco. Seu medo é de terem que deixar as casas locadas, seja por falta de pagamento, seja por conta da vontade dos proprietários – que, sem contrato formal, utilizam-se de vários tipos de violência para retirar as famílias do dia para a noite sem justificativa e cobram altas taxas de atraso no pagamento do aluguel (chegando a 10% por dia), conforme podemos ver no depoimento abaixo:

“Eu gostava mais de lá, porque a gente não pagava aluguel e aí a gente conseguia se manter. Agora tudo o que a gente pega é para aluguel. Aluguel, água, luz. Ainda mais eu que tô sem trabalhar. Agora nem sei o que é que vou fazer da minha vida, sinceramente. (…) Pra nós não teve melhoria nenhuma, muito pelo contrário, só piora. (…) Minha casa era muito boa mesmo, quando derrubaram me deu muita tristeza.”

Como foi possível constatar a partir do acompanhamento in loco das demolições e das entrevistas realizadas, havia muitas diferenças entre as condições de moradia no Córrego do Bispo. Havia desde casos extremos de precariedade até outros opostos, com construções consolidadas em áreas estáveis e suficientemente afastadas do córrego, resultado de mais de uma década de acúmulo de trabalho familiar. No entanto, a remoção há um ano teve como resultado a demolição de todas as diversas situações, com o aumento da insegurança habitacional das famílias agora por outros motivos. Todas as entrevistadas gastam com as despesas com moradia muito mais do que 30% de seus rendimentos, fator que as enquadra no déficit habitacional, mesmo estando em atendimento pela política pública da Secretaria Municipal de Habitação.

Os relatos ouvidos mostram que os afetados ainda não perceberam que o mercado imobiliário informal de toda a região foi impactado depois da remoção em massa, tendo o valor médio do aluguel aumentado para patamares superiores àquele do Auxílio Aluguel. Ou seja, novas famílias passaram a engrossar o quadro de necessidades habitacionais, mesmo não tendo sido removidas, pois seus aluguéis aumentaram e a renda familiar não. Assim, além de gastar recursos públicos de atendimento habitacional que não dão resposta ao déficit habitacional, o município acaba o incrementando.

A área removida continua no mesmo estado de ruínas e sujeira de um ano atrás, sem que a Prefeitura tenha nem mesmo limpado e conservado. Já há novas construções sendo feitas, de pessoas de fora da comunidade que têm se apropriado de maneira violenta da terra abandonada, para o desespero dos antigos moradores que continuam por perto. Muitos nos relataram que, se o Auxílio Aluguel for mesmo cortado, não tem como se manterem no aluguel e, certamente, voltarão a ocupar a mesma área.

“Minha casa era linda! Eu passei 12 anos construindo a casa. Eu morava num barraquinho de madeira, aí eu fui construindo morando dentro. Morei cinco anos depois de construído. Derrubaram. Derrubaram falando que ia melhorar, que ia fazer não sei o quê, isso e aquilo outro e, até hoje, não fizeram nada. Não sei se estou falando a mais, mas se não fizer nada por nós, todo mundo vai voltar em triplo – não é nem em dobro não, é em triplo. Vamos voltar todo mundo pra lá, entendeu? É só o que eu falo.”

Presenciamos, portanto, uma situação dramática de toda uma comunidade, que permanece em atenção constante, seja por conta da remoção já realizada e dos problemas decorrentes delas, que podem se agravar a qualquer momento, seja por conta da ameaça de remoção futura, já que a maior parte dela, não removida e bastante consolidada, está ameaçada pela PPP Casa da Família. Já discutimos aqui que não necessariamente este projeto habitacional atenderá a comunidade, por conta dos critérios e requisitos de acesso ao financiamento necessário para aquisição das unidades habitacionais que serão construídas.

Desta maneira, pudemos observar nessas visitas e entrevistas muitas consequências contraditórias do Auxílio Aluguel como atendimento habitacional. Mesmo assim, endossamos aqui a manifestação da Defensoria Pública que pede a sua renovação para as famílias removidas no Córrego do Bispo até que as famílias tenham uma solução definitiva. Tais contradições foram criadas pela ação intempestiva do município, que remove sem atendimento habitacional adequado, criando novos e mais complexos problemas do que aqueles que havia antes. Abandonar tais famílias à própria sorte, nesta situação já criada, parece apenas apertar definitivamente a corda antes colocada no seu pescoço com o Auxílio Aluguel. Precisamos centrar esforços em retirar esta corda, repensando a maneira de intervenção do poder público em situações como esta, que tendem a piorar com a futura implantação da PPP Casa da Família.

*Pós-doutoranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade.